Folha de S.Paulo

50 ANOS EM TRANSE

Após meio século, clássico de Glauber Rocha e do cinema novo levanta reflexões sobre a atualidade do roteiro, cujo ‘original renderia três horas’

- STEPHANIE RICCI

DE SÃO PAULO

“Vamos dar um golpe, virar a mesa, fazer história. Se houver eleições, Vieira ganha. Se não houver, ganho eu”, diz o líder conservado­r Porfírio Diaz a Júlio Fuentes, dono dos principais veículos de comunicaçã­o da República de Eldorado: fictícia ilha tropical em meio a embates políticos.

“Terra em Transe”, a explosiva distopia político-carnavales­ca do baiano Glauber Rocha, completa 50 anos. Listada entre os cinco melhores filmes nacionais pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema e vencedora de prêmios em Cannes e Havana, a obra ganhou tom profético.

“Vendo a crise política de hoje percebo que o filme fica mais atual a cada ano”, diz Moira Toledo, doutora em Ciências da Comunicaçã­o pela USP e professora na Faap.

No país fictício, mídia e direita articulam para tirar a esquerda do poder. Enquanto isso, no comício do populista Vieira, inspirado em políticos como Miguel Arraes, um homem simples se arrasta em meio à multidão que ouve discursos de dois apoiadores.

Quando a voz do homem finalmente escancara aos gritos a miséria de Eldorado, é calada, a ação embalada por gritos de “extremista!”.

“A forma como Vieira se porta me lembra o Lula. Já o Diaz representa toda a nossa direita emplumada. Representa­ntes ligados à religião, como o Alckmin, e outros carismátic­os”, analisa Toledo.

“O filme antecipou situação que ocorreu no Brasil e na América Latina: líderes populistas mais à esquerda quando se apresentam como alternativ­a, mas, depois que sobem ao poder, isso muda”, contrapõe o cientista político José Álvaro Moisés.

O roteiro final, fruto de dois anos de pesquisa e quase 700 páginas escritas, foi só um resumo da ideia original do autor. No rascunho datado de 1965, homossexua­lidade, religiões de matriz africana, críticas à Petrobras e trabalho escravo integravam os temas.

“O original era para no mínimo três horas, tipo ‘Novecento’, do Bernardo Bertolucci. Por questão de produção, deixou muitas ideias de fora”, diz Luiz Carlos Barreto, diretor de fotografia do filme.

Mesmo encurtado, o longa foi recebido com polêmica. De um lado, a direita alegava apologia ao marxismo e desrespeit­o à Igreja Católica. De outro, a esquerda se aborrecia, categoriza­ndo o filme como politicame­nte ingênuo.

Apesar da fama de amante de discussões, o diretor não passou batido pelas críticas. “Direita/centro/esquerda me detestam. Se alguém quiser me dar um tiro, pode”, disse Glauber em carta aos presentes “no dia em que esculachar­am ‘Terra em Transe’”.

Anos depois, com a gravação do filme em tom de poema religioso “A Idade da Terra” (1980), Glauber fora fadado ao ostracismo dos intelectua­is da sétima arte, tachado como desleal ao marxismo.

“Ele me procurou bastante e ao Rogério [Sganzerla] em situações bem fortes, tarde da noite ou muito cedo de manhã, pra abrir o coração. Ficou vulnerável, abatido. As pessoas estavam se afastando dele”, diz a atriz Helena Ignez, que foi casada com os dois diretores.

Longe do grande público, Glauber adoeceu. Aos 42 anos, foi-se a grande voz do cinema novo —de infecção generaliza­da, os laudos disseram. Há quem diga que o mal era mesmo tristeza.

Ele também foi profético ao repetir o inconformi­smo do protagonis­ta de seu grande filme. Era de Mário Faustino a frase que ilustrava a morte do personagem Paulo Martins, inspirado em figuras como Paulo Francis:

“Não conseguiu firmar o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura. Gladiador defunto, mas intacto. Tanta violência, mas tanta ternura.”

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Glauber Rocha dirige Jardel Filho e Danuza Leão no filme

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