Folha de S.Paulo

Longa cearense acha distância justa entre câmera e personagem

- LÚCIA MONTEIRO

FOLHA

Em sua sequência inicial, “Corpo Delito” exibe um sóbrio e paciente registro dos gestos de homens que montam pequenas peças plásticas, parafusos e outros objetos intrigante­s, provavelme­nte componente­s de tomadas.

O primeiro longa-metragem do cearense Pedro Rocha começa, conforme nos indicam os uniformes dos filmados, em uma “fábrica-escola”.

Num registro que flerta com o cinema direto e as estratégia­s do documentár­io de observação, empregadas por cineastas como Frederick Wiseman e Raymond Depardon, assistimos à conversa entre a psicóloga da entidade e um dos detentos em regime semiaberto que trabalham ali.

Ele, Ivan (Ivan Silva), diz que não suporta o cotidiano controlado: da fábrica para casa, de casa para a fábrica. Cedo ou tarde vai se livrar da tornozelei­ra eletrônica que o monitora noite e dia.

Ela pergunta se se trata de impaciênci­a ou de rebeldia, e explica que, ao final do período de liberdade condiciona­l, ele poderá circular à vontade.

Com poucos cortes, a montagem intensific­a a lentidão de intermináv­eis conversas jogadas fora entre Ivan e os amigos, no quintal ou na cozinha.

Em um plano fixo e longo, vemos o protagonis­ta deitado na frente da TV, ladeado pela mulher, Gleiciane, e a filha, Glenda. As imagens não são mostradas; nenhum contracamp­o surge para aliviar a monotonia da cena. Tais escolhas de realização logram traduzir algo da tensão e do tédio presentes nessa peculiar situação de confinamen­to.

Mas não é só um documentár­io de observação. Com roteiro de Diego Hoefel, tem estrutura. Comporta, evidenteme­nte, um momento de reviravolt­a. O fim de ano se aproxima. Festas, música e cerveja gelada dominam assuntos e paisagem. Há a pelada noturna na praia, sob vigilância dos espigões da orla de Fortaleza. Há corpos que dançam em frente a botecos da vizinhança, na Favela dos Índios.

Será que Ivan vai conseguir passar a meia-noite em casa?

A câmera guarda dos personagen­s, e do protagonis­ta em especial, distância justa: nem exposição excessiva de sua intimidade nem julgamento­s moralizant­es.

Em cena que parece citar o passeio de Edmund pelas ruínas de um edifício bombardead­o em “Alemanha, Ano Zero” (Roberto Rossellini, 1947), a fotografia precisa de Juliane Peixoto e Guilherme Silva enquadra os amigos de Ivan a explorar espaços de um prédio em construção que envelhece antes mesmo de ficar pronto.

Do alto, olham o horizonte: arranha-céus de um lado, casinhas de outro. Apontam seus celulares para fotografar, na mais autêntica banalidade contemporâ­nea.

A sensação que sobrevém, porém, é a de corpos que não encontram inserção no tecido urbano, oscilando entre o ser observado e o observar. DIREÇÃO Pedro Rocha ELENCO Ivan Silva, José Neto, Gleiciane Gomes PRODUÇÃO Brasil, 2016, 16 anos QUANDO estreia nesta quinta (7) AVALIAÇÃO bom

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Os jovens Neto e Jefferson em cena de ‘Corpo Delito’, o primeiro longa-metragem do diretor cearense Pedro Rocha

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