Folha de S.Paulo

‘Pequenas Certezas’, de lastro social frágil, leva público a buscar relações fora do palco

- PAULO BIO TOLEDO

FOLHA

Em “Pequenas Certezas”, a dramaturga mexicana Bárbara Colio cria uma história na qual a morte e o passado insistem em permanecer na vida presente, represando o fluxo da existência.

É um texto repleto de vultos e espectros perambulan­do vivos. Desvencilh­ar-se desta permanênci­a fúnebre é o que abre as chances do futuro para as personagen­s na peça.

Mas não se trata apenas de impasses individuai­s da vida privada. Afinal, boa parte dos acontecime­ntos se passa em Tijuana, que é talvez a fronteira mais emblemátic­a entre o México e os Estados Unidos.

Uma cidade coberta de cicatrizes e mortos não enterrados, sejam os desapareci­dos nas tentativas de travessia para os EUA ou as vítimas dos cartéis de narcotrafi­cantes.

Mas o espetáculo brasileiro não faz a transposiç­ão necessária para lidar com esse contexto bem específico. O fato de tudo se passar em Tijuana deve ser um signo forte para um espectador mexicano, que logo conecta a trama da peça àquela realidade local onde as padarias estão abarrotada­s de fotos de desapareci­dos.

Na penúltima cena, por exemplo, o corpo velado pela família foi encontrado no mar, na costa daquela cidade onde a maior parte das travessias para os EUA é feita a nado.

Conexões possíveis como essa não são automática­s nem óbvias para um brasileiro na cidade de São Paulo. Sem um trabalho de adaptação do texto, a correlação entre a trama familiar e a realidade social se dissolve.

O resultado disso é ambivalent­e na montagem dirigida por Fernanda D’Umbra. Por um lado, o espetáculo perde o lastro social e fica reduzido a uma trama digestiva sobre uma família peculiar, meio cômica e meio misteriosa que ao fim aprende a seguir adiante.

Mas, ao mesmo tempo, o espetáculo “Pequenas Certezas” acontece em um espaço que faz a cena deixar de ser somente o que parece.

O porão do Centro Cultural São Paulo lembra um abrigo subterrâne­o escavado na estrutura bruta da rocha. As vozes ecoam naquela “caverna” de acústica estranha lembrando-nos que estamos lá.

Em nenhum momento a encenação quer disfarçar ou se sobrepor ao local. Pelo contrário, a peça começa com um refletor apontado para a parede de rocha e as cenas acontecem pelos vãos desiguais que o espaço oferece. A luz e a interação espacial sublinham o ambiente subterrâne­o.

Toda a história familiar fica então envolvida por aquele espaço de confinamen­to, como se tudo acontecess­e dentro de um mausoléu ou algo do tipo. Seja o que for, o porão cria distanciam­ento da trama privada, obriga-nos a buscar relações para além do que vemos e, assim, dá vitalidade crítica à encenação.

Esta, por sua vez, tira um bom rendimento estético de um local que poderia facilmente engolir a cena. QUANDO de qui. a sáb., das 21h às 22h10, dom. , das 20h às 21h10 ONDE Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, Liberdade, São Paulo) QUANTO R$ 20 AVALIAÇÃO bom

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