Folha de S.Paulo

O fator Jerusalém

Reconhecim­ento da cidade como capital de Israel mina papel dos EUA de mediador na questão palestina e pode gerar novo ciclo de violência

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Se os envolvidos em uma negociação mantêm uma estratégia ao longo de anos e o processo não avança, urge fazer algo diferente. Imbuído de tal raciocínio, Donald Trump rompeu uma das linhas mestras da política americana para a questão israelo-palestina ao reconhecer oficialmen­te Jerusalém como capital de Israel.

O anúncio implica a mudança de local da embaixada dos Estados Unidos, hoje em Tel Aviv. Trata-se de inflexão radical na mediação de um conflito prolongado.

Pelo plano de partilha das Nações Unidas, que em 1947 previa um Estado para os judeus e outro para os palestinos, Jerusalém ficaria sob gestão internacio­nal. Em respeito a isso, a grande maioria dos países que têm relações diplomátic­as com os israelense­s fixou sua representa­ção em Tel Aviv.

Se os EUA deixam de lado essa premissa, sua condição de fiador do diálogo entre as partes resulta seriamente comprometi­da.

Afinal, a mudança atende a uma antiga reivindica­ção de Israel, em especial do premiê Binyamin Netanyahu, cuja base de centro-direita demonstra pouco interesse em negociar com o lado palestino.

Naturalmen­te, houve indignação entre as nações do Oriente Médio, e o risco de um novo ciclo de violência na região fez as demais potências condenarem a ação, vista como tomada de partido. Quanto ao Brasil, que abriga harmoni- osamente comunidade­s árabes e judaicas, a equidistân­cia se mostra a melhor política a longo prazo.

Uma vez mais, o republican­o cumpre uma promessa de campanha, assim como tem feito com a retirada de seu país de acordos internacio­nais. Outros ocupantes da Casa Branca cogitaram a mesma medida quando candidatos, mas nenhum se dispôs a mudar o que anos de diplomacia consolidar­am.

Para Trump, transferir a embaixada é somente “o reconhecim­ento de uma realidade”. Com efeito, o centro do poder de Israel está em Jerusalém, sede do Executivo e do Parlamento. Líderes mundiais nem passam por Tel Aviv nas visitas ao país. Desconside­rar o peso dos simbolismo­s nessa contenda, porém, pode se revelar um risco.

Sagrada para o islamismo, o judaísmo e o cristianis­mo, Jerusalém constitui o ponto mais delicado para que se chegue a um acordo de paz. Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, dividiu-se entre a parte ocidental, controlada por Israel, e a oriental, de maioria árabe, mas sem soberania da Autoridade Nacional Palestina.

Sua administra­ção, pois, deveria ser objeto de discussão somente após israelense­s e palestinos entrarem em consenso sobre outros temas mais prementes, como as colônias judaicas em território­s destinados a um Estado palestino, inclusive em Jerusalém Oriental.

Ressalve-se que Trump não endossou a atual delimitaçã­o de fronteiras e manteve o apoio à solução de dois Estados —a melhor alternativ­a, no entender desta Folha.

Pode não ser o bastante, no entanto, para compensar o que se afigura um perigoso erro de cálculo.

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