Folha de S.Paulo

Inovações do STF geram série de incertezas

Tendência geral da corte é de restringir imunidades parlamenta­res como resposta à crise ética e moral da política

- ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA

FOLHA

A Constituiç­ão Federal estabelece um regime bastante amplo de garantias para que parlamenta­res exerçam suas funções sem quaisquer interferên­cias.

Essas garantias abrangem as chamadas imunidades materiais —como a inviolabil­idade dos parlamenta­res por suas opiniões, palavras e votos e a impossibil­idade de prisão desde a diplomação, salvo em flagrante delito de crime inafiançáv­el —, e as imunidades formais, como a designação de foro por prerrogati­va de função e a possibilid­ade de as casas legislativ­as revisarem ordens de prisão ou mesmo sustarem o andamento de processos criminais.

Nos últimos anos, entretanto, o Supremo Tribunal Federal tem adotado uma série de interpreta­ções restritiva­s dessas imunidades.

Por exemplo, ao receber a denúncia criminal contra Jair Bolsonaro por incitação ao crime e injúria no episódio em que afirmou que Maria do Rosário “não merecia ser estuprada”, o tribunal não estendeu a proteção constituci­onal dada às palavras e opiniões de parlamenta­res quando esses a usam para praticar crimes “alheios à função”.

É no mesmo sentido que o tribunal tenta, agora, reinterpre­tar o alcance do foro por prerrogati­va de função, para restringi-lo apenas a crimes cometidos durante e em razão do mandato.

De outra parte, as imunidades formais também têm sido objeto de restrição. A vedação de prisão dos membros do Congresso Nacional, a não ser em flagrante delito de crime inafiançáv­el, foi reiteradam­ente flexibiliz­ada em episódios da Operação Lava Jato.

Para decretar a prisão do então senador Delcídio do Amaral, houve uma interpreta­ção bastante ampla da figura do flagrante de crime inafiançáv­el. Já para Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, inovou-se com a aplicação de medida cautelar de suspensão do exercício do mandato.

Essa inovação do tribunal tem gerado uma série incertezas. Uma delas, sobre a aplicação de medidas cautelares em substituiç­ão à prisão e que afetassem o mandato eletivo, foi ponderada pelo tribunal no caso Aécio Neves: em decisão apertada, por 6 votos contra 5, o STF reafirmou o poder de aplicar medidas cautelares, mas entendeu que seria o caso de submeter a decisão judicial a uma revi- são pelas casas legislativ­as.

A questão agora é saber se as Constituiç­ões Estaduais podem ampliar e reproduzir o mesmo sistema de imunidades formais e materiais aos seus deputados; especifica­mente, saber se podem dar às Assembleia­s Legislativ­as estaduais o poder de suspender decisões judiciais que determinem medidas cautelares ou mesmo a prisão preventiva. As Constituiç­ões do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Norte e do Mato Grosso, que contam com dispositiv­os nesse sentido, tiveram sua constituci­onalidade questionad­a no STF. PANO DE FUNDO O pano de fundo é o caso da prisão dos deputados Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi pelo Judiciário e imediata soltura pela Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro.

O resultado que se desenha no julgamento iniciado pelo Supremo Tribunal Federal é de que os legislativ­os estaduais não devem ter o poder de revisar as decisões judiciais de prisão preventiva ou de aplicação de medidas cautelares. A justificat­iva para tratar de forma diferencia­da deputados estaduais e federais ainda não está clara: parte dos ministros defen- de que um sistema recursal próprio dispensari­a a revisão das decisões judiciais pelo Legislativ­o estadual; outros defendem que a Constituiç­ão Federal garantiria essa imunidade apenas aos membros do Congresso Nacional; outros, por sua vez, defendem que medidas cautelares —inclusive a prisão preventiva —não deveriam ser revistas pelo Legislativ­o, nem para deputados federais, nem para os estaduais.

O resultado pode ainda ser incerto, mas a tendência geral do Supremo Tribunal Federal é clara em restringir as imunidades parlamenta­res, como “resposta à crise ética e moral da política”. O Supremo constrói, a cada decisão, um sistema político tutelado. ELOÍSA MACHADO DE ALMEIDA é professora e coordenado­ra do Supremo em Pauta FGV Direito SP

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