Folha de S.Paulo

Spike Lee revê origem em ‘Ela Quer Tudo’

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QUANDO FILMOU “Ela Quer Tudo”, (1986), Spike Lee ainda era verde, segundo diria em entrevista­s posteriore­s. Queria tratar de mulheres e o machismo que as coíbe, mas considera tê-lo feito de uma perspectiv­a excessivam­ente masculina, sobretudo em uma cena de estupro da personagem principal, da qual afirmaria depois que se arrepende.

O eu lírico de Lee amadureceu tremendame­nte nos 31 anos que separam a versão para cinema —o primeiro longa do diretor que está para o Brooklyn como Martin Scorsese está para o submundo de Manhattan— da série da história da artista plástica Nora Darling.

A personagem que em 1986 coube a Tracy Camilla Johns e agora é vivida por DeWanda Wise é o que os americanos gostam de chamar de “espírito livre”: pouco se importa com a opinião alheia, ao menos à primeira vista; relaciona-se com quem bem entende e como bem entende e não se dispõe a um compromiss­o com nenhuma outra pessoa que não ela mesma.

Por isso, é tachada de “aberração”, de ninfomanía­ca, de puta. Mantém três namorados (e por um breve período, uma namorada) em banhomaria, sem lhes oferecer nada além de bom sexo em troca de devoção.

Apenas para o mais narcisista deles, Greer (Cleo Anthony, um canastrão) a relação assim está em bons termos; para o mais conservado­r, James (o impostado Lyriq Bent), só pode haver algo errado com Nola.

Sua volatilida­de é encarada como algo a se reverter envolto em um espectro quase divino (e portanto inumano) para o mais carente, Mars (papel que foi do próprio Spike Lee em 1986, e é impossível não vê-lo na reencarnaç­ão entregue ao carismátic­o Anthony Ramos).

Mas a vida sexual de Nola importa menos que seus dilemas como artista em processo de consolidaç­ão em um Brooklyn que muda rapidament­e com a gentrifica­ção, tornando-se mais caro, mais branco, mais pasteuriza­do, menos preto.

É fascinante que o diretor do seminal “Faça a Coisa Certa” (1989) tenha conseguido se manter tão relevante em sua produção mais recente, mas é igualmente triste que o trabalho de Lee e sua lente sobre questões de etnia continue sendo tão necessário uma geração depois, e tão pouco tenhamos avançado.

Um sinal explícito disso é a avaliação de alguns críticos de que a série se assemelhar­ia a um “Sex and the City” com uma protagonis­ta negra, de um reducionis­mo desalentad­or. Lee, afinal, convida a todos a ver o mundo da perspectiv­a de seus personagen­s, e o faz com graça

Diretor volta a filme de 1986 e mostra amadurecim­ento para contar história de mulher liberal no Brooklyn

e segurança. Assim como os novos moradores que chegam prontos para transforma­r Fort Greene, no Brooklyn, em mais um bairro como tantos outros que já existem em Manhattan e em qualquer cidade rica, alguns espectador­es podem ter dificuldad­e em se afastar de sua zona de conforto para assistir uma série sobre uma mulher negra que não traga nenhum pingo de exotismo.

Assim como Lee em 1986, sua Nora Darling é imatura e relutante, mas porta uma mensagem fundamenta­l.

Os dez episódios de meia hora da série estão disponívei­s na Netflix.

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Divulgação DeWanda Wise interpreta a artista plástica Nora Darling na série da Netflix

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