Folha de S.Paulo

Construído sobre tempos vazios e com fatos ínfimos, ‘Lucky’ homenageia ator

- INÁCIO ARAUJO

FOLHA

Será preciso esperar um pouco para ver o plano mais bonito de “Lucky”, pois este é o plano final.

É também a última chance de ver num papel principal o ator de “Paris, Texas” e de tantos episódios de “Twin Peaks”, entre muitos outros: Harry Dean Stanton.

Stanton tornou-se uma espécie de lenda do cinema independen­te americano, quando mais não seja pela longevidad­e: morreu em setembro de 2017, aos 91 anos.

“Lucky” é o filme de Stanton: a última idade, o prazer da independên­cia (ser sozinho é diferente de ser solitário, gosta de acentuar), o gosto pelas caminhadas.

No restante do tempo, passa pelo bar ou pela cafeteria do lugarejo onde mora (no Oeste, talvez Califórnia, talvez Novo México —em todo caso, lugar desértico), briga ou conversa com as pessoas, fuma e assiste televisão (sem interesse).

Como muitos filmes independen­tes americanos, “Lucky” não foge ao hábito de se construir sobre vazios, sobre tempos mortos.

Como muitos deles, sofre com os riscos que assume. Os encontros no bar, o desentendi­mento com o advogado (ele detesta a todos) não bastam para encher nossos olhos.

Existe algo de gasto nisso tudo. Não são Stanton nem os cactos que povoam o deserto.

Mesmo o desmaio (ainda nos primeiros minutos) não nos retira desse sentimento de rotina que é o problema não do personagem, mas do filme. Ou, como disse Jorge Luis Borges em certa ocasião, a vida tem o direito a ser desinteres­sante, a arte não (não foi bem isso que disse, mas a ideia é essa).

No caso deste filme de estreia de John Carroll Lynch existe certa oscilação entre as duas coisas: há instantes em que o filme é interessan­te, a despeito de tratar de um homem que, nesse momento, encara face a face a perspectiv­a da morte.

Ele a teme, é verdade, mas nem por isso perde a vitalidade: existe alternativ­a? Melhor ser realista —é o que lhe ensina o dicionário.

Um realismo que um outro personagem não sem interesse da trama, Howard (David Lynch), terá de aprender depois que seu cágado foge, deixando-o sozinho (mais para solitário, no caso).

É desses pequenos, ínfimos fatos que se faz “Lucky”. E, claro, da pergunta: será ele de fato um homem de sorte, como sugere seu apelido? Não é muito para fazer um filme memorável. É bastante para homenagear de forma bem simpática o veterano e sólido ator que foi Stanton. (IDEM) DIREÇÃO John Carroll Lynch ELENCO Harry Dean Stanton, David Lynch e Ron Livingston PRODUÇÃO EUA, 2017, 14 anos QUANDO em cartaz AVALIAÇÃO regular

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