Folha de S.Paulo

O grosso e o fino

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RIO DE JANEIRO - Tom Jobim nunca se conformou com o fato de que três de suas maiores canções da primeira fase da bossa nova —“Outra Vez”, letra e música dele, e “O Amor em Paz” e “Chega de Saudade”, com Vinicius de Moraes—, não tivessem feito nos EUA o sucesso de “Desafinado”. Certo dia, em sua casa, ele me explicou: o americano que cometera as versões em inglês “não entendera nada”. Era o cantor e letrista Jon Hendricks, membro do trio vocal Lambert, Hendricks & Ross.

Em 1963, Hendricks gravara um disco solo pela Reprise, “Salud! João Gilberto”, com 12 títulos da bossa nova consagrado­s por João Gilberto, incluindo os três citados, vertidos por ele, Hendricks, ao seu jeito. “Chega de Saudade”, por exemplo, se transforma­ra no lamento de um sujeito que quer voltar para sua cidade na roça —nada mais distante do que os cariocas Tom e Vinicius tinham em mente. Tom me disse que, depois, pensara em desautoriz­ar aquelas letras, mas desistira.

Hendricks era craque em criar versões vocais de clássicos instrument­ais do jazz, com versos bobos, mas que permitiam ao cantor fazer uma espécie de vocalese com letra. Aplicara isso a temas associados a Count Basie, e o LP resultante, “Sing a Song of Basie”, gravado pelo LH&R em 1958, era sensaciona­l. Mas as letras da bossa nova eram diferentes —tão sofisticad­as quanto suas harmonias e delicadas quanto seu ritmo. E Hendricks era um grosso.

Em 1993, nas duas noites do Free Jazz em sua homenagem, no Rio e em São Paulo, Tom se viu no palco ao lado de Jon Hendricks. Assistindo hoje no YouTube a um sorridente Tom acompanhan­do Hendricks enquanto este destroça “Garota de Ipanema”, ninguém saberá o que estaria se passando por sua cabeça. Tom era fino.

Hendricks morreu no dia 22 último em Nova York, aos 96 anos. Devia achar que Jobim era seu fã. ANDRÉ SINGER avsinger@usp.br

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