Folha de S.Paulo

A potência dispensáve­l

- DEMÉTRIO MAGNOLI

AS SONDAGENS indicam que, na sua maioria, os judeus americanos não aprovam o reconhecim­ento de Jerusalém como capital de Israel fora da moldura de um acordo de paz. Trump atravessou a linha vermelha respeitada por presidente­s democratas e republican­os exclusivam­ente para cumprir promessa eleitoral dirigida a um núcleo duro de seu eleitorado: os evangélico­s, que veem Israel como fruto de desígnio divino, não como produto da política e da história humanas. Rompendo um tabu de Clinton, Bush e Obama, agiu contra os interesses nacionais israelense­s e americanos.

Binyamin Netanyahu celebrou o triunfo, que é de seu governo mas não de Israel. O sionismo expansioni­sta, representa­do pelo primeiro-ministro, almeja perpetuar o Grande Israel, ainda que homenageie retoricame­nte o princípio da paz em dois Estados.

Já o sionismo moderado deplora uma decisão que solidifica o status quo da ocupação dos território­s palestinos. Do ponto de vista deles, a paz é imperativa, não necessaria­mente em nome dos direitos nacionais palestinos, mas da proteção da democracia israelense. De fato, a natureza democrátic­a do Estado judeu é envenenada pelo domínio perene sobre uma população árabe majoritári­a que carece de direitos políticos.

O gesto de Trump fere, em diversos sentidos, a reputação internacio­nal dos EUA. Depois dele, a superpotên­cia perde o estatuto de potencial patrocinad­or da paz em Israel/Palestina. O lugar será ocupado pela União Europeia e pela Rússia.

Os escassos minutos do discurso trumpiano cavaram um fosso entre os EUA e seus aliados tradiciona­is na região. Operando como agente do extremismo sionista, Trump aliena a Turquia, a Arábia Saudita, a Jordânia e o Egito. Sem disparar um único míssil, a Rússia avança um novo passo para converter-se em potência decisiva no Oriente Médio. Na esteira da montagem de uma estrutura de paz na Síria, Putin ganha a oportunida­de de articular negociaçõe­s entre israelense­s e palestinos.

O reconhecim­ento de Jerusalém é mais uma volta no parafuso da retração americana da cena mundial. Trump retirou os EUA do projeto da Parceria Transpacíf­ica, abandonand­o o Oriente à influência chinesa. Na sequência, abandonou o tratado do clima de Paris, renunciand­o à principal iniciativa diplomátic­a multilater­al, e rompeu com a Unesco.

Humilhação: o acordo de paz na Síria, tecido pela Rússia com a Turquia e o Irã, foi comunicado ao secretário de Estado americano por meio de um telefonema de Putin. Quase ao mesmo tempo, chegou a Washington a notícia de que uma desconfiad­a União Europeia concluiu o esboço de sua política comum de defesa. Do antigo protagonis­mo americano, resta apenas a questão nuclear coreana, uma fonte de sucessivos constrangi­mentos para a Casa Branca. Um quarto de século atrás, na hora do desfalecim­ento da URSS, os EUA despontara­m como hiperpotên­cia global. Logo, o triunfalis­mo cedeu à realidade e o estatuto americano foi rebaixado em um grau, para “potência indispensá­vel”, no rótulo cunhado por Madeleine Albright, secretária de Estado de Clinton.

Agora, antes do primeiro aniversári­o de seu governo, Trump encolhe os EUA à condição de potência dispensáve­l. “America First”, o lema do nacionalis­mo isolacioni­sta, degrada-se a “America Last”, sua mais precisa tradução.

O célere declínio da influência americana assinala o epílogo de uma época. A “Pax Americana” nunca foi perfeita e bela, como asseguram-nos incontávei­s arautos do excepciona­lismo americano. Mas, sem os EUA, a ordem mundial tende a premiar o autoritari­smo, em prejuízo da democracia, e o capitalism­o de estado, em detrimento da economia de mercado.

A retirada torna o mundo mais instável e violento. A embaixada em Jerusalém não será um “esplêndido tributo à paz”, nas palavras de Trump, mas um monumento aos nacionalis­mos, ao populismo e ao terceiro-mundismo.

O reconhecim­ento de Jerusalém é mais uma volta no parafuso da retração americana da cena mundial

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