Folha de S.Paulo

EM BUSCA DE WATERSHIP DOWN

- REINALDO JOSÉ LOPES

COLABORAÇíO PARA A FOLHA

É mais ou menos como a “Eneida”, só que com coelhinhos no lugar dos guerreiros troianos que tentam escapar da destruição anunciada de seu antigo lar.

Colocando as coisas nesses termos, aventurar-se a ler “Em Busca de Watership Down” pode parecer coisa de doido de pedra. Não se deixe enganar pela aparente incongruên­cia, porém: os heróis felpudos criados pelo britânico Richard Adams (19202016) são, à sua maneira, tão épicos quanto Eneias.

Ou quanto Cassandra, a princesa de Troia condenada a profetizar o fim de sua cidade e não ser ouvida por ninguém.

Na saga de Adams, Cassandra se metamorfos­eia em Quinto, um coelho pequenino e assustadiç­o cujas visões lhe mostram o viveiro de Sandleford (onde o bichinho mora ao lado de seu irmão Avelã) transforma­do num campo de sangue.

Ao contrário da profetisa troiana, Quinto consegue convencer Avelã e um punhado de outros jovens coelhos da verdade de suas visões, e esse grupo de desajustad­os tem de abrir caminho à força para deixar o viveiro natal.

Eles saem então à procura de uma nova morada na zona rural inglesa —o pequeno monte conhecido como Watership Down (todos os lugares da história podem ser identifica­dos no mapa do Reino Unido do mundo real). MAIS DO QUE HOBBITS Sim, estamos falando de uma “jornada do herói” clássica, em certo sentido —a situação que descrevi no último parágrafo poderia ser aplicada, em grande medida, ao hobbit Bilbo Bolseiro, ou ao “caipira espacial” Luke Skywalker nos primeiros minutos da série “Star Wars”.

Mas Adams acrescenta alguns ingredient­es especiais a essa receita aparenteme­nte comum. O mais importante deles é —para usar uma palavra que anda perdendo conteúdo semântico de um jeito alarmante nos últimos tempos— “empatia”.

Empatia em doses cavalares, aliás, o que confere ao autor (e, de carona, ao leitor) a capacidade de enxergar o mundo pelos olhos de um bando de coelhos.

É verdade que os aventureir­os orelhudos de Adams, quando estão entre si, pensam e falam como seres humanos, mas não conseguem manipular objetos com destreza, construir ferramenta­s ou entender a linguagem do Homo sapiens.

Sabem que podem ser presas de quase qualquer predador, de duas ou quatro pernas, se não utilizarem ao máximo a astúcia e a coesão social que o Senhor Frith lhes deu.

“Senhor Frith”, o Sol, é o Criador na mitologia dos coelhos e um dos personagen­s lendários das histórias primordiai­s que interrompe­m a narrativa em momentos estratégic­os, ajudando não só a entender o universo mental dos heróis como também a lançar luz sobre cenas e motivos da ação vindoura.

É como se cada ponto de virada da vida dos coelhos de carne e osso fosse transfigur­ado por um comentário mítico —frequentem­ente cômico e, ao mesmo tempo, mortalment­e sério.

O grande astro desses mitos não é Frith, mas El-ahrairah, o Príncipe dos Mil Inimigos, patriarca e protetor dos coelhos que é uma figura clássica de “trickster”, ou trapaceiro (no romance, Adams o compara a Robin Hood).

Tratado com humor indulgente pelo Criador, El-ahrairah é dono de astúcia invencível, mas carrega em seu próprio nome o perigo que paira o tempo todo sobre as cabeças de qualquer coelho, cujos predadores são conhecidos como “Elil” —“os Mil”, ou seja, os de número infinito na língua lapina, ou “coelhês”, esboçada pelo escritor britânico.

Profundame­nte enraizada na cultura e na história natural da Inglaterra rural, num universo linguístic­o em que o folclore e a tradição clássica viram parceiras, essa narrativa aparenteme­nte despretens­iosa tem um poder transcende­nte difícil de explicar.

Leia —e, se possível, aproveite para ler Homero e Virgílio logo depois. AUTOR Richard Adams TRADUÇÃO Rogério Galindo EDITORA Planeta QUANTO R$ 41,90 (464 págs.) AVALIAÇÃO ótimo

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