Folha de S.Paulo

SOR JUANA INÉS DE LA CRUZ OU AS ARMADILHAS DA FÉ

- SYLVIA COLOMBO MAURÍCIO MEIRELES

Em um momento em que uma série da Netflix toma liberdades para contar de maneira apelativa a história da freira e intelectua­l Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), é um bom sinal o retorno ao mercado de um dos clássicos de Octavio Paz (1914-1998).

Em “Sor Juana Inés de La Cruz ou As Armadilhas da Fé”, o Nobel mexicano contextual­iza a personagem, sua obra e sua biografia, assim como oferece um ensaio sociológic­o sobre a Nova Espanha do século 17, ou seja, o México colonial, onde nasceu e viveu Sor Juana.

“É um dos livros mais ambiciosos de Paz, que se lê de forma ligeira, no estilo caracterís­tico do Nobel, ou seja, em que ele mais seduz do que convence”, diz à Folha o crítico literário e escritor mexicano Rafael Toriz.

“Quase 20 anos depois de sua morte, a ocasião é propícia para enfrentar o esforço intelectua­l de um autor que quis se ver refletido na vida e na obra dessa freira ecumênica e universal”, completa.

Mas quem foi Sor Juana, que, por um lado gerou curiosidad­e, admiração intelec- tual, paixões e ciúmes que até motivaram tentativas de estancar sua pluma? E que, por outro, continua viva pela potência de suas palavras?

“A razão de sua atualidade é o fato de ela ter expressado a voz de um México que hoje nos é tão familiar. Um México miscigenad­o”, diz Mónica Lavín, autora da biografia romanceada da freira, “Yo, La Peor” (ed. Grijalbo).

Sor Juana, frisa Lavín, “fazia questão tanto de usar o náhuatl [idioma indígena] quanto de participar da vida na corte, das discussões sobre a ciência, a poesia e as artes de seu tempo. Ela ajudou a produzir uma identidade para essas terras”. LIMITES DA LIBERDADE Juana de Asbaje y Ramírez de Santillana nasceu em San Miguel Nepantla, mas aos 15 anos já estava na corte dos vice-reis na Cidade do México, capital da Nova Espanha.

Foi protegida por nobres, mas sua inteligênc­ia desafiava os religiosos, que não viam com bons olhos uma mulher com tanto conhecimen­to.

Logo começou a enfrentar as dificuldad­es de seu tempo. Deveria casar-se —mas isso a impediria de estudar.

Foi então que entrou para um convento da Ordem de São Jerônimo. Ali, tinha um escritório e acumulou uma biblioteca de 4.000 títulos.

Escreveu poesia, teatro e prosa. Como era costume na época, tecia poemas elogiosos aos vice-reis —e, em especial, às vice-rainhas, o que levantou dúvidas sobre sua possível homossexua­lidade.

Sua liberdade, porém, era limitada. Como freira, não se esperava que entrasse em debates teológicos ou mesmo que fosse publicada. Só que isso passou a acontecer, por influência dos nobres, que levaram seus escritos para serem editados na Europa.

A alta cúpula da Igreja na Nova Espanha passou a lhe impor dificuldad­es, principalm­ente quando ela começou a questionar escritos de religiosos como o padre Antonio Vieira (1608-1697).

Sor Juana se viu no dilema entre seguir nas letras e deixar o convento ou seguir sendo freira, mas abrindo mão de sua vida intelectua­l. Acabou optando, ao menos abertament­e, pela segunda opção.

Há uma tendência, reforçada na série televisiva, de vê-la como uma heroína feminista antes de o termo existir, como alguém que enfrentou a Igreja e o “establishm­ent” da colônia.

Mas as coisas não eram assim tão claras. Sor Juana não era freira apenas porque não quis se casar.

Exerceu suas funções com generosida­de, cuidou de doentes a ponto de deixar-se contaminar numa epidemia e, apesar de ter discrepânc­ias com seu mentor, o jesuíta Antonio Núñez de Miranda, estabelece­u com ele uma relação de confiança. Ao mesmo tempo, transitava bem na corte e não demonstrav­a rebeldia quanto à situação colonial da Nova Espanha.

O que só se soube depois de sua morte foi que sua abdicação da vida intelectua­l não foi total. Ela seguiu produzindo em segredo até morrer.

“Naquele tempo, uma mulher sem proteção não tinha muita escolha. Creio na hipótese de ela ter tomado uma decisão pragmática ficando dentro da Igreja. E hoje sabemos que não parou de escrever, com a certeza que tinha de que sua obra sobreviver­ia”,

MÓNICA LAVIN,

autora do romance histórico ‘Yo, La Peor’, baseado na vida de Sor Juana diz Lavín.

Para a historiado­ra Maria Ligia Coelho Prado, da Universida­de de São Paulo, é um “anacronism­o” falar em feminismo com relação à trajetória de Sor Juana.

“Primeiro porque havia mulheres participan­do da vida intelectua­l, como a espanhola Tereza D’Ávila (15151582). E também porque é equivocado imaginarmo­s que os conventos eram locais de encerramen­to”, diz.

“No período colonial, os espaços religiosos eram os espaços do debate intelectua­l por excelência. As principais universida­des eram religiosas. Parece-me uma decisão coerente a de Sor Juana, se queria exercer a atividade intelectua­l, optar por viver num convento. Aos olhos de hoje pode parecer um sacrifício, mas é preciso entender a época.”

Entre uma entrevista e outra sobre Sor Juana no México, a reportagem da Folha pagou um taxista com um bilhete de 200 pesos mexicanos (cerca de R$ 34).

Pergunto ao motorista se sabe quem é a figura na nota.

“Foi uma freira que fez muitas coisas boas para os mexicanos”, disse o condutor, sem parecer ter muita certeza. “Não foi?” AUTOR Octavio Paz TRADUÇÃO Wladir Dupont EDITORA Ubu QUANTO R$ 109 (305 págs.)

A razão de sua atualidade é o fato de ela ter expressado a voz de um México que hoje nos é tão familiar, um México miscigenad­o. Ela ajudou a produzir uma identidade para essas terras

 ?? Reprodução ?? Cédula de 200 pesos mexicanos (cerca de R$ 34) traz a efígie de Sor Juana Inés de la Cruz
Reprodução Cédula de 200 pesos mexicanos (cerca de R$ 34) traz a efígie de Sor Juana Inés de la Cruz

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil