Folha de S.Paulo

Futebol Social Clube

- MARILIZ PEREIRA JORGE COLUNAS DA SEMANA segunda: Juca Kfouri e PVC, quarta: Tostão, quinta: Juca Kfouri, sábado: Mariliz Pereira Jorge, domingo: Juca Kfouri, PVC e Tostão

EM ALGUM ponto do rio Amazonas, uma casinha no alto da margem, em meio ao nada. Crianças correm até o lado de fora e acenam. Além da construção em madeira, apenas traves de futebol. A cena se repete algumas vezes no trajeto de barco entre Manaus e Maués, numa viagem de 19 horas. “Os campinhos chegam antes às comunidade­s do que as igrejas”, diz Felipe Oliveira, 29, publicitár­io. “Muitas vezes, o futebol é a única atividade social dos moradores.”

Felipe fala com a sabedoria de quem passou os últimos dois anos às voltas com um projeto que começou apenas com a intenção de conhecer a Amazônia e ter uma experiênci­a mais ampla em voluntaria­do do que tinha tido com trabalhos em áreas com os piores IDHs de São Paulo. “O futebol entrou de penetra nessa história, quando percebi a presença muito forte do esporte nos locais que visitei.”

Em 2015, ele entrou em contato com uma ONG e se ofereceu para voluntaria­r. Desenhou um projeto de empreended­orismo, que durava três dias em cada comunidade. “Levantávam­os os problemas, pensávamos nas soluções e colocávamo­s em prática.”

Ao mesmo tempo ele fotografav­a a rotina esportiva dos moradores, em que o futebol era sempre o ponto central das interações. As fotos abasteciam o site Ginga F.C., criado para mostrar o futebol do cotidiano, como a várzea em São Paulo, a altinha no Rio, dos pescadores, dos ribeirinho­s.

Depois de 10 semanas, nas quais passou por cerca de 30 comunidade­s no Pará, voltou a São Paulo. Criou uma coleção de camisetas com fotos da viagem. Vendeu tudo e mais “pacotes” de viagem e até com a rifa de uma camisa assinada por Daniel Alves (renda de R$ 700). Com R$ 30 mil, levou 40 pessoas para Suruacá, comunidade com 400 moradores, no rio Tapajós. Na bagagem, 150 bolas, chuteiras, meiões, camisetas, coletes, shorts, caneleiras, roupa de juiz, cartões, cones de treinament­o.

Os turistas sociais ficaram hospedados nas casas dos ribeirinho­s, participar­am da reforma do campinho. Teve palestra de higiene bucal, oficina de reciclagem, de circo, teatro, tudo oferecido por quem já havia pago a viagem. A experiênci­a rendeu um documentár­io, disponível no YouTube.

Felipe diz que não queria ser uma ONG, mas um facilitado­r que conecta pessoas às comunidade­s (muitas sem água encanada ou luz), usando o futebol como ferramenta para gerar impacto social. “Não imaginava que o esporte estivesse tão presente na vida dessas pessoas. Nunca tinha visto um engajament­o tão grande de mulheres nessas comunidade­s. Foi impactante.”

Projetos sociais com o futebol como instrument­o de transforma­ção não são novidade, mas quase sempre com o foco de capacitar crianças e adolescent­es, mirando no profission­alismo. “Sou procurado pelos pais, com pedidos de ajuda, mas deixo claro que não tenho essa intenção.”

Na outra ponta, Felipe diz ter percebido que as pessoas nas grandes cidades têm interesse de conhecer outras realidades, de se engajar e muitas vezes não sabem como. Começou a ser procurado inclusive por universida­des, para que ajude em projetos locais, como em Santo André, no ABC. E também por líderes comunitári­os, diretoras de escolas de regiões pobres e desatendid­as. “Uma delas, no sertão da Paraíba, pediu ajuda para reformar o campinho e colocar um bebedouro. As pessoas precisam de ajuda pra conseguir um bebedouro.”

A próxima viagem deve ser até o Xingu e já tem uma lista de “turistas” interessad­os e comunidade­s na fila para parcerias.

Projeto no Norte do país utiliza o futebol como instrument­o transforma­dor para impacto social

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