Folha de S.Paulo

Esquecidos, haitianos vagam pelo continente

Crise econômica no Brasil e linha dura nos EUA fazem milhares de migrantes buscarem refúgio do Chile ao Canadá

- FABIANO MAISONNAVE

País ao sul recebe 90 mil haitianos; México, que recebeu 17 mil, financia viagem ao Brasil e ao Chile

Em Tijuana, quase 3.000 haitianos fugidos da recessão brasileira enfrentam o dilema de escolher entre cruzar a fronteira ilegalment­e para os EUA, permanecer no México ou regressar ao Brasil.

Em Porto Príncipe, cerca de 1.100 haitianos se candidatam por mês a um visto brasileiro, enquanto voos fretados partem diariament­e para Santiago, a porta de entrada dos cerca de 90 mil haitianos que desembarca­ram no Chile desde o ano passado.

Em Saint-Bernard-de-La- colle, no Canadá, uma cidade de tendas recebeu parte dos mais de 6.000 haitianos que cruzaram ilegalment­e neste ano vindos dos EUA, onde o governo Donald Trump ameaça fazer uma deportação em massa.

O fim da missão de paz da ONU, em outubro, e os quase oito anos desde o terremoto de 2010 deixaram o Haiti em segundo plano no cenário mundial. Mas o país mais pobre do hemisfério, além de incapaz de absorver seus imigrantes de volta, continua exportando milhares de cidadãos pelo mundo.

“Muita gente se arrependeu de sair do Brasil, muita. O destino final eram os Estados Unidos. Agora, estão ficando no México porque sabem que a situação do Brasil não está boa”, diz Christophe­r Faustin, 36. Ele está há um ano parado em Tijuana após morar por quatro anos na região Sul, onde trabalhou como pintor automotivo.

Em setembro do ano passado, após meses desemprega­do em Blumenau (SC), ele concluiu que não dava mais para continuar no Brasil.

Com a mulher e a filha, que é cidadã brasileira e completari­a dois anos na estrada, raspou as economias, emprestou dinheiro de parentes e começou uma longa viagem para os Estados Unidos.

O périplo atravessou dez países e durou 96 dias.

Após chegar ao Acre de avião, a família cruzou para o Peru por terra, invertendo a rota de entrada da imigração haitiana ao Brasil. De lá, quase sempre de ônibus, passaram por Equador, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e Guatemala até chegarem a Tijuana, na fronteira mexicana com os

Haiti

Estados Unidos.

O trecho mais perigoso foi no Panamá, onde entraram ilegalment­e pela Colômbia a pé e caminharam por seis dias em uma região montanhosa de floresta. Pegos, se identifica­ram como congoleses para não serem deportados de volta para o Haiti.

“Os policiais nos trataram como animais”, lembra Faustin, que carregou a filha no colo todo o tempo. SÍSIFO Os Faustin não eram os únicos haitianos pelo caminho. Só no ano passado, 17.078 haitianos ingressara­m no México, segundo o Instituto Nacional de Migração (INM). A grande maioria fugia da recessão brasileira.

Foram tantos que, quando a família chegou a Tijuana, já era tarde demais. Em 22 de setembro do ano passado, para interrompe­r o fluxo de haitianos vindos do Brasil, o então presidente Barack Obama revogou uma medida adotada após o terremoto de 2010 que suspendeu a deportação automática de haitianos que entravam nos EUA sem visto.

Mesmo os haitianos que haviam entrado sob a garantia dessa medida passaram a ser deportados pelos EUA para o Haiti, onde têm cidadania, principalm­ente após a chegada de Trump ao poder, em janeiro. Desses, alguns voltaram ao Brasil para mais um recomeço.

Mais recentemen­te, em 22 de novembro, veio outro revés com a decisão do governo de revogar o Status de Proteção Temporária (TPS, em inglês) de 59 mil haitianos que chegaram após o terremoto, cujo saldo foi de ao menos 200 mil mortos e 1,5 milhão de desalojado­s. Caso não deixem o país até julho de 2019, ficam sujeitos a deportação — daí a fuga para o Canadá.

O endurecime­nto dos EUA deixou os haitianos em Tijuana com opções difíceis: cruzar ilegalment­e pelo deserto, se estabelece­r numa das regiões de baixos salários e entre as mais violentas do mundo ou voltar para o Brasil. O governo mexicano tem custeado as passagens aos que querem regressar.

Em abril, a reportagem da Folha encontrou a família Faustin junto com outras dezenas de haitianos em um abrigo improvisad­o no galpão da igreja Embajadore­s de Jesus, na periferia de Tijuana. Outros se alojaram em casas e albergues insalubres no centro, região de alto consumo de drogas parecida à cracolândi­a de São Paulo.

Oito meses depois, em conversa por telefone, Faustin explicou que continua em Tijuana, onde foi nomeado cônsul para os cerca de 3.000 haitianos que permanecem ali.

Mas ele está só: a mulher e a filha entraram nos EUA em setembro com um visto temporário e atualmente moram na Flórida, a centenas de quilômetro­s de distância. Ele não sabe quando voltará a vê-las. PORTO PRÍNCIPE Em vários lugares da capital haitiana, o desejo de abandonar o país é bastante visível. No aeroporto, a fachada de uma empresa oferece pacotes de viagem para lugares como Cascavel (PR) e Macapá (AP). Perto do saguão de entrada, centenas esperam sob árvores a hora de embarcar para o Chile. No centro, formam-se grandes filas para solicitar passaporte.

Perto do aeroporto, está o Centro de Solicitaçã­o de Vis- tos para o Brasil (BVAC, na sigla em inglês), que funciona no marco de um convênio com a Organizaçã­o Internacio­nal para as Migrações (OIM), uma agência da ONU.

Segundo a coordenado­ra do BVAC, Shauna Martin, cerca de 1.100 pessoas entram com solicitaçã­o de visto por

CHRISTOPHE­R FAUSTIN, 36

haitiano que imigrou para o Brasil e agora tenta chegar aos EUA, onde estão sua mulher e sua filha

GUSTAVO BANDA

pastor que administra o abrigo da igreja Embajadore­s de Jesus, Tijuana

MARIA LOUIS

haitiana prestes a vir para o Brasil mês —a decisão cabe ao consulado brasileiro no Haiti.

Recentemen­te, explica ela, tem havido um número crescente de solicitaçõ­es vindas de familiares de imigrantes já estabeleci­dos no Brasil.

Estabeleci­do em meados de 2015, o convênio foi renovado recentemen­te até julho do ano que vem. Desde 2012, o Brasil emitiu cerca de 60 mil vistos por razões humanitári­as para cidadãos haitianos.

Atualmente, são concedidos mensalment­e entre 1.000 e 1.500 vistos. Os números são do Itamaraty.

Maria Louis, 35, é um caso típico dessa nova leva de haitianos. No final de agosto, ela foi ao BVAC buscar o visto dela e de seus dois filhos. Em algumas semanas, eles se mudariam para Florianópo­lis (SC), onde o marido é carpinteir­o há um ano.

“Ele fala que é bonito, faz frio e tem muita comida por lá”, diz. E a crise? “Não tenho medo, vou trabalhar. Quando alguém trabalha, ganha o que precisa.”

Voltar ao Brasil, por enquanto, está descartado para Faustin, que fala um português quase perfeito. Assim como muitos haitianos em Tijuana, ele espera uma improvável mudança na política imigratóri­a norte-americana.

“O governo mexicano já ofereceu a [passagem de] volta para o Haiti e o Brasil, mas eles querem ficar perto dos Estados Unidos, à espera de um milagre”, diz o pastor Gustavo Banda, que administra o abrigo da igreja Embajadore­s de Jesus.

“Esta é uma viagem que só se faz uma vez na vida. Alguns haitianos morreram no Panamá e na Nicarágua. Eles dizem: ‘Não quero passar por isso de novo’.”

“se arrependeu de sair do Brasil, muita. O destino final eram os Estados Unidos. Agora, estão ficando no México porque sabem que a situação do Brasil não está boa “

Esta é uma viagem que só se faz uma vez na vida “

[Meu marido] fala que é bonito, faz frio e tem muita comida. Não tenho medo, vou trabalhar. Quando alguém trabalha, ganha o que precisa

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Lalo de Almeida-13.abr.17/Folhapress Haitiano lustra os sapatos na área externa de uma igreja evangélica na periferia de Tijuana, usada como abrigo por migrantes que querem entrar nos EUA; crise afastou migrantes

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