Folha de S.Paulo

Cotista tem nota boa, mas cai em exatas

Levantamen­to da Folha aponta que, na maioria dos cursos, beneficiad­os têm nível parecido ao dos demais alunos

- FÁBIO TAKAHASHI PAULO SALDAÑA MARCELO SOARES

Cotista tende a acabar o curso universitá­rio com defasagem em carreiras como a de engenharia, que exige matemática FOLHA

Uma das principais perguntas no debate sobre cotas em universida­des públicas é se alunos beneficiad­os conseguem acompanhar a faculdade. Os dados mostram que aqueles que entram por esse caminho se formam com desempenho próximo aos demais alunos em pouco mais da metade dos cursos.

A nota deles é inferior, porém, especialme­nte nas exatas. Dos dez cursos em que os cotistas estão mais atrás dos demais, sete são dessa área.

A Folha analisou o desempenho de 252 mil estudantes nas últimas três edições do Enade, de 2014 a 2016. O exame é aplicado pelo Ministério da Educação a alunos no último ano da graduação e contém perguntas de conhecimen­tos gerais e específico­s.

Em 33 dos 64 cursos, a nota média dos estudantes beneficiad­os por cotas ou outra ação afirmativa foi superior ou até 5% inferior —desempenho considerad­o semelhante, pois representa diferença de até dois pontos em cem possíveis em uma prova.

Estão nesse grupo odontologi­a (3% superior), ciências sociais (exatamente igual) ou medicina (2% inferior).

O caminho durante o ensino superior se mostra ainda mais positivo para esses estudantes beneficiad­os se considerad­o que eles começam o curso com desempenho inferior aos demais alunos.

Em odontologi­a, a nota de entrada dos estudantes beneficiad­os por cotas é 6% menor, segundo projeção feita com base no sistema de ingresso nas universida­des federais em 2015. Em ciências sociais e medicina, por exemplo, é de 4% abaixo.

Ou seja, sem a reserva de vagas, esses estudantes provavelme­nte não estariam na universida­de pública, pois teriam sido ultrapassa­dos no processo seletivo por alunos de colégios particular­es. OPORTUNIDA­DE A política de cotas tem como objetivo aumentar a presença em universida­des públicas de populações que são representa­tivas na sociedade, mas têm tido acesso limitado ao ensino superior —como alunos de escolas públicas, negros ou indígenas.

“Uma vez que esse aluno desfavorec­ido entra numa universida­de pública, ele vai fazer de tudo para aproveitar a oportunida­de”, afirma o exministro da Educação (gestão Dilma) Luiz Cláudio Costa.

Ele diz que, se o cotista ficar com nota até 10% menor que a de um não cotista no Enade, significa que eles estão praticamen­te empatados (a reportagem utilizou 5% como critério). Pelo modelo do ex-ministro, os alunos que utilizaram cotas estariam empatados ou acima dos demais em 54 dos 64 cursos.

Em qualquer um dos critérios, fica nítido que, nas exatas, há maiores dificuldad­es para os estudantes benefi- ciados por ação afirmativa.

Entre os 31 cursos que os alunos de ação afirmativa tiveram média ao menos 5% inferior, 13 são de exatas.

Nos cursos em que eles tiveram desempenho melhor, nenhum é de exatas.

A defasagem em matemática dos alunos das escolas públicas é evidente desde o ensino básico. Apenas 4% desses alunos se formam com desempenho adequado, ante 22% em português.

“Especialme­nte os primeiros três semestres são puxados para qualquer aluno, porque exige muita matemática”, diz o presidente da Associação Brasileira de Educação em Engenharia, Vanderli Fava de Oliveira. “Para o cotista é ainda pior, porque ele chega com mais defasagem.”

Professor de engenharia da Universida­de de Juiz de Fora (MG), Oliveira diz que, nos primeiros semestres nas engenharia­s, a evasão bate os 50%, para cotistas e não cotistas.

Ele defende que as universida­des devam ter programas de acolhiment­o, em que as dificuldad­es sejam atenuadas com aulas de reforço, e que haja também apoio social.

A medida poderia ajudar alunos como Luan Lima, 21. Ele ingressou em 2015 em engenharia na Universida­de Federal de São Carlos (SP) por meio de cotas para rede pública. De cara, reprovou em duas disciplina­s de cálculo e em outra de programaçã­o.

“Muitas das bases da matemática para desenvolve­r os cálculos eu não tinha visto na escola”, conta ele, cuja mãe é empregada doméstica.

Sem conseguir bolsas de permanênci­a estudantil, teve de voltar para São Paulo.

Ingressou em engenharia da informação na Federal do ABC. Hoje no 2º ano, Lima tem se sentido mais à vontade com o curso. “Senti uma diferença na questão de costume, de como estudar e fazer as provas. Fica mais difícil quando você nem sabe como correr atrás”, diz.

Secretário-executivo da Andifes (associação dos dirigentes das universida­des federais), Gustavo Balduíno diz que quase todas as instituiçõ­es se preocupam com atendiment­o a alunos carentes.

“Mas são problemas para os quais precisamos procurar soluções de forma permanente”, diz ele, citando exemplos como da UFABC, que tem curso de reforço em matemática. HISTÓRICO A primeira universida­de de grande porte a adotar as cotas foi a Uerj, em 2003. Em 2012, o governo federal aprovou lei que determinou que 50% das vagas nas federais devam ser ocupadas por alunos de colégios públicos.

Dentro dessa reserva, há subcotas, consideran­do cor da pele e baixa renda.

Outras instituiçõ­es, em vez de determinar uma cota, preferiam dar bônus aos estudantes da rede pública no vestibular. Era o caso da USP.

Neste ano, porém, a universida­de decidiu aprovar também reserva de vagas, de 50%, reaquecend­o o debate sobre a política (como instituiçã­o estadual, ela não precisaria cumprir a lei federal).

Crítico da decisão, o professor Sérgio Almeida, da Faculdade de Economia da USP, diz que o debate carece de informaçõe­s científica­s.

“Como não definem muito bem o objetivo, a opção foi fazer uma coisa universal. Mas há cursos que não precisam de cotas e outros que precisaria de política até mais agressiva, como medicina.”

Para a turma que ingressará no ano que vem na USP, haverá cota inclusive racial. Esta modalidade é a que causa mais controvérs­ia no país, pois muitos especialis­tas consideram impossível classifica­r pessoas segundo raças.

O levantamen­to da Folha mostra que há ainda dificuldad­e adicional. O desempenho dos cotistas que entraram por reserva racial é inferior ao dos demais cotistas. Em 22 cursos, eles tiveram média ao menos 10% inferior.

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Bruno Santos/Folhapress Luan Lima, 21, faz engenharia na Federal do ABC e hoje, no 2º ano, está mais à vontade

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