Folha de S.Paulo

Crime no clima

- MARCELO LEITE

IMAGINE UM terreno de 100 m por 100 m coberto por neve ou gelo — chamaria isso de geleira? Na Argentina, quem não usar esse nome corre o risco de ser declarado criminoso.

A vítima da situação surreal é o glaciologi­sta Ricardo Villalba. Ele se viu indiciado pelo juiz federal Sebastian Casanello sob a acusação de “abuso de autoridade”. Apelou da decisão e, se perder, será julgado criminalme­nte.

Suposto delito do pesquisado­r, exdiretor do Instituto Argentino de Nevologia, Glaciologi­a e Ciências Ambientais (Ianigla): empregar no Inventário Nacional de Geleiras de seu país o limite mínimo de um hectare (100 m x 100 m, ou 10.000 m2).

O levantamen­to usa imagens de satélites. Embora alguns desses aparelhos tenham sensores para detectar do espaço superfície­s menores que isso, o critério serve para evitar que se incluam áreas com neve ou gelo apenas temporário.

Faz sentido. Geleiras recebem proteção especial de uma lei aprovada em 2010, legislação que o próprio Villalba ajudou a aprovar.

O padrão adotado está de acordo com o que se pratica na comunidade internacio­nal de glaciologi­stas. Na realidade, é um limite menor (mais rigoroso) do que o estipulado por outros pesquisado­res.

Do alto de sua ignorância, ambientali­stas da província de San Juan (oeste da Argentina) discordam. O grupo Asamblea Jáchal No Se Toca acusa Villalba de fixar o limite de um hectare para favorecer a mineradora de ouro canadense Barrick Gold.

A empresa opera na região a mina Veladero, perto da cidade de San José de Jáchal. Segundo os acusadores, Villalba deveria ter mapeado todas as geleiras, independen­temente do tamanho, pois este não se encontra estabeleci­do em lei.

Pelo raciocínio tortuoso, a inclusão de pequenas manchas de gelo nas proximidad­es da mina teria forçado uma avaliação ambiental mais rigorosa do impacto da extração do ouro pela Barrick Gold. Com isso, haveria que avaliar a contaminaç­ão de corpos d’água com cianeto (usado para separação do metal precioso) e evitá-la.

Há algo de kafkiano em culpar um estudioso argentino de geleiras pela poluição de cianeto causada por uma empresa mineradora canadense. Nem nos Estados Unidos, onde grassa uma caça às bruxas contra pesquisado­res do clima, os celerados da “alt-right” foram tão longe.

Contra Villalba se levantam nada menos que ambientali­stas. Seria de esperar outra atitude de quem em geral se acha na mesma trincheira dos especialis­tas em glaciologi­a, que ganham importânci­a crescente com a mudança do clima.

O pessoal da Asamblea Jáchal No Se Toca pelo visto inverteu a máxima ambientali­sta segundo a qual se deve pensar globalment­e e agir localmente. Ao que parece, estão atuando contra a esfera universali­zante da ciência para alavancar embates locais que monopoliza­m sua atenção.

Villalba não está sozinho, porém. Colegas de vários países iniciaram uma petição online em seu favor que destaca a retidão pessoal e científica do pesquisado­r e o ridículo científico das acusações. O caso também chegou às páginas da revista científica “Nature”.

Se Villalba terminar condenado, Jáchal No Se Toca é que será acusada por um crime de lesa-ciência. Precisam se tocar.

Há algo de kafkiano em culpar um glaciologi­sta argentino pela poluição de uma mineradora canadense

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