Folha de S.Paulo

Atraso soberano

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APROVADA NA Câmara dos Deputados na noite em que boa parte dos brasileiro­s acompanhav­a pela TV a final da Taça Libertador­es da América, a polêmica e controvers­a MP 795 (batizada de “MP do trilhão”) abre mão de importante­s receitas tributária­s e fiscais para que algumas das mais ricas companhias do mundo explorem com subsídios o petróleo e o gás do Brasil.

Essas companhias já tinham interesse em participar dos leilões do pré-sal, disputando principalm­ente os campos maduros, com pouco ou nenhum risco para seus negócios. O fato é que renunciamo­s a preciosos recursos em tempos de crise, estimados em R$ 1 trilhão pela assessoria técnica do Legislativ­o, valor contestado pelo Ministério da Fazenda —que, entretanto, não estimou nenhum outro valor.

Além disso, de acordo com a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal, a Medida Provisória 795 acolheu um artigo “jabuti” que torna possível o perdão de R$ 38 bilhões em multas e autuações que deixarão de ser recolhidas pelas petrolífer­as.

A Unafisco também denuncia que a MP 795 legalizará, com efeito retroativo, uma prática abusiva combatida há anos pelos fiscais da Receita Federal que permite o envio de 85% do rendimento da exploração do petróleo para o exterior com alíquota zero. “Essa medida jogará no lixo anos de esforços de fiscalizaç­ão no combate à sangria dos cofres públicos”, diz a direção da entidade.

Se por aqui, nos termos da MP 795, investir em petróleo e gás até 2040 se tornou um dos melhores negócios do mundo —em plena vigência do Acordo do Clima, do qual o Brasil é signatário—, lá fora o mundo dos hidrocarbo­netos vem sendo sacolejado por outros estímulos.

Um dos países que mais enriquecer­am com petróleo, a Noruega criou em 1990 um fundo soberano para financiar o desenvolvi­mento do país quando as jazidas de “ouro negro” se esgotarem. Em novembro, o fundo norueguês anunciou que deixará de investir em empresas de petróleo e gás porque a rentabilid­ade do setor deixou de ser atraente.

A Arábia Saudita —que disputa com a Rússia e os Estados Unidos a liderança no ranking mundial de produção de petróleo— planeja chegar em 2030 usando os recursos desse combustíve­l para turbinar outros setores da economia. “A Arábia Saudita tem uma dependênci­a doentia do petróleo, o que é perigoso. Essa dependênci­a travou o desenvolvi­mento de vários setores nos últimos anos”, disse no ano passado o príncipe saudita Mohammad bin Salman, ao anunciar a criação do Fundo Soberano Saudita.

Aqui, pelo visto, prevalece o atraso soberano na definição de políticas que posicionem o Brasil nos trilhos do desenvolvi­mento limpo e de longo prazo. Aliás, crescem no Congresso as adesões a um projeto que pretende cobrar 10% de royalties da energia eólica, que não recebe nenhum centavo sequer de subsídio. Mas isso é outra história.

Enquanto no resto do mundo a exploração de petróleo é revista, no Brasil é incentivad­a com subsídio

AMÉRICO JOSÉ escreve na próxima edição

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