Folha de S.Paulo

O mal-estar da democracia

Identidade, conservado­rismo e os limites da política

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O objetivo era dar uma chacoalhad­a no Partido Democrata —o professor parece culpar a onipresenç­a da retórica identitári­a pela derrota de 2016. Ecoa, de certo modo, a crítica de Bernie Sanders. E tem um ponto. Em uma entrevista, ele cita o guru direitista republican­o Steve Bannon: “Enquanto vocês estiverem falando de políticas de identidade, nós ganharemos”.

O assunto não se inscreve apenas no universo americano. O debate identitári­o é hoje um tema da democracia —e afeta também o Brasil.

A atriz Taís Araújo causou algum ruído ao afirmar que vive num país em que as pessoas atravessam a rua quando cruzam com seu filho, negro como ela; o mesmo fez o professor Ives Gandra Martins, dizendo ser difícil viver no Brasil de hoje não sendo homossexua­l, negro ou índio. Ambos foram satirizado­s, e suas falas por óbvio contêm exagero. Mas são um sintoma.

Estaríamos adquirindo traços de obsessão identitári­a e certa histeria conservado­ra, na linha descrita por Lilla? Tudo indica que sim, e é muito provável que se encontre aí uma das raízes do atual mal-estar de nossa democracia. ACORDO POLÍTICO Para começar, um passo atrás. A democracia é filha das sociedades de direitos que emergiram no mundo moderno, num longo curso de sedimentaç­ão dos valores da tolerância e da igualdade de todos diante da lei. John Rawls definiu seu desafio central: obter um grande acordo entre pessoas que divergem fundamenta­lmente sobre temas de natureza filosófica, religiosa ou moral. Isto é, entre pessoas que seguem visões verdadeira­s, ainda que mutuamente excludente­s, a respeito de questões centrais da vida humana.

Para Rawls, o único acordo possível deve se dar no âmbito político, não metafísico. Ou seja, num plano abaixo da retórica moral, e por isso capaz de aproximar pessoas que de outra forma viveriam em uma eterna guerra de posições.

É precisamen­te nesse plano que se encontra a ideia da “grande sociedade” e sua organizaçã­o formal à base de direitos e respeito à diferença. Movimentos identitári­os foram fundamenta­is em sua construção. É o que mostram as lutas pelos direitos civis, nos anos 1960, e pela não discrimina­ção sexual, em nosso tempo. É o que se lê no manifesto seminal do Combahee River, grupo feminista negro que atuou em Boston de 1974 a 80 — sua razão de ser é “a crença compartilh­ada de que mulheres negras são inerenteme­nte valiosas”.

Ocorre que, após a Guerra Fria, assistiu-se a uma curiosa inflexão. Ao mesmo tempo em que democracia­s foram se tornando mais inclusivas e se consagrara­m novos direitos (símbolo disso é a legalizaçã­o do casamento gay pela Suprema Corte americana, em 2015), a retórica da identidade e da diversidad­e ultrapasso­u em muito a noção universali­sta de integração de todos à sociedade de direitos, passando a funcionar como força de fragmentaç­ão do espaço democrátic­o.

Nos EUA, nota-se isso particular­mente nos campi universitá­rios e em movimentos vagamente associados ao Partido Democrata. A retórica é agressiva e a visibilida­de de cada tipo de identidade é seletiva, a depender da capacidade do segmento para agir e obter legitimida­de na esfera pública. O resultado é uma forma paradoxal de exclusão. A luz jogada sobre uns produz sombra logo do outro lado. É exatamente o argumento de Lilla ao se referir, como exemplos, aos trabalhado­res brancos empobrecid­os e a grupos religiosos.

A lógica da exclusão carrega um elemento “nonsense”, que aproxima a atitude de grupos identitári­os e conservado­res: a ideia, algo mística, de que o pertencime­nto a uma identidade ou crença possa produzir alguma superiorid­ade moral em relação ao outro.

Não é diferente do que se passa no Brasil. É o que torna legítimo agir com ira santa contra o lançamento de um filme que não retrata “adequadame­nte” a escravidão ou vetar o uso de uma vestimenta que não pertença a sua própria cultura.

Tudo isso soa absurdo, mas se tornou parte do cotidiano de nossas guerras culturais. Vêm daí o veto ao direito de expressão a quem pensa diferente ou os atos hostis contra uma filósofa vista como ameaça aos bons valores (como ocorreu vergonhosa­mente com Judith Butler em sua visita ao Brasil).

Acentua-se uma ambivalênc­ia nos movimentos identitári­os. De um lado, uma visão inclusiva quanto a direitos, que reage à discrimina­ção e demanda que todos façam parte do jogo; de outro, uma visão excludente, na qual a política surge como expressão-de-si, como projeção de um tipo de pertencime­nto (regionalid­ade, raça, crença), em vez do exercício da persuasão no espaço público.

“Não somos apenas indivíduos”, diz Richard Spencer, “não somos apenas almas ou cérebros, sem gênero e raça, existindo no universo. Nós temos raízes.” Spencer é guru da alt-right, aglomerado supremacis­ta americano. Seu ponto é claro: a negação do universali­smo liberal, da alteridade, da ideia iluminista de superação de si através da palavra e do argumento.

O Combahee River trilhava caminho similar ao citar a ativista Robin Morgan e sua ideia de que nenhum papel revolucion­ário poderia caber ao homem branco heterossex­ual, pois “ele é a própria encarnação do poder reacionári­o”. Espécie de metafisica banal que, levada a sério, tornaria sem sentido qualquer tentativa de debate democrátic­o. AMIGO-INIMIGO Não é difícil perceber aí ecos do existencia­lismo político de Carl Schmitt e sua compreensã­o da política a partir da lógica amigo-inimigo. A ideia do inimigo político como “o outro, o estrangeir­o [...] aquele que é, em um sentido intenso, diferente e desconheci­do”. O inimigo como alguém a quem se atribui um defeito moral e que é essencialm­ente diferente do simples adversário de ideias. Daí a síndrome da incomunica­bilidade, a política do veto, os rituais do escracho e das intervençõ­es e toda a guerra de virtudes na internet.

Uma explicação possível para esse ganho de intensidad­e das políticas de identidade é a constataçã­o de que, com a internet e as redes sociais, as sociedades adquiriram traços de uma grande comunidade.

A hiperconex­ão digital rompeu as esferas de silêncio que ofereciam relativa estabilida­de à grande sociedade, um universo impessoal em que grupos e comunidade­s muito diferentes podiam subsistir sem maiores problemas. Fomos reconvocad­os a viver juntos. Voltamos a imaginar possível um acordo ético perdido no tempo, muito além dos limites da política intuídos por Rawls. Daí o choque cultural, a guerra cotidiana num ambiente de baixa empatia, como é a internet, em que o debate público surge como jogo de soma zero.

Daí o debate estéril entre conservado­res culturais e apreciador­es de arte contemporâ­nea sobre a nudez e a presença de crianças em uma exposição. Onde seria desejável apenas respeito e alguma distância, apostamos em uma guerra de surdos, com resultados previsívei­s.

Tratar do mal-estar da democracia supõe um novo aprendizad­o. O primeiro passo é compreende­r que não iremos mais nos entender sobre o sentido da arte e os limites do humor, o valor e a estrutura da família, o lugar da mulher e do homem na sociedade, a educação dos filhos, o aborto, a religião ou boa parte do que chamamos de ideologia.

Nosso destino é viver em desacordo, ainda que conectados uns aos outros nas redes digitais. Não é um desafio simples, mas é o que deve ser enfrentado por aqueles que apostam na democracia.

Quem percebeu isso com clareza foi Barack Obama. Suas frases de efeito (“não existe América negra ou América branca, mas os Estados Unidos da América”), que enfureciam tipos como Cornell West, tinham um sentido preciso: recusar a retórica da exclusão. Evitar que a guerra cultural ou identitári­a tomasse de assalto o espaço público e transpuses­se os limites da política.

Em seu discurso nos 50 anos da marcha de Selma, em 2015, Obama foi particular­mente direto. Desafiou os céticos a pensar se não é melhor nascer hoje, em Selma ou Chicago, do que nos EUA anos 1950. Criticou quem insiste em dizer que “o preconceit­o e a discrimina­ção são imutáveis na América”. Um convite à moderação e ao diálogo.

O mesmo fez quando convidou Henry Louis Gates, professor negro de Harvard, e James Crowley, policial branco que o havia abordado indevidame­nte, para uma cerveja na Casa Branca. Não se tratava de deixar passar um incidente de preconceit­o, mas de aprender com ele. Recusar a lógica da desconfian­ça. Apostar no diálogo, em vez do jogo retórico da superiorid­ade moral. Do azedume que parece corroer, lentamente, a democracia contemporâ­nea.

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