Museus imaginários
A obra de arte na era do Instagram
bém com o corpo desnudo; o jogo de pernas em contraposição, como numa dança descompassada, cada um a seu modo; o braço de Jesus apontando outro caminho à frente, quase um gesto de resistência que cabe bem aos tempos de perseguições políticas e religiosas de hoje.
Pouco do que a obra originalmente representava permanece nas leituras dessa nova imagem. Por outro lado, o alcance proporcionado pelas redes sociais faz com que sua reprodução possa ser vista ao mesmo tempo por milhares de pessoas, algo inimaginável pelo artista ao retratar o episódio do “Quo Vadis?” no começo do século 17. MUNDO DE IMAGENS A composição integra uma série recente iniciada por Nino no Instagram, um espaço que ele define como uma “biblioteca de pensamentos, um caderno de anotações visuais”.
Para quem coleciona e reinventa imagens de todos os tipos como ele, a rede estaria mais para uma biblioteca de Babel, um arquivo sem fim de quase tudo que se pode encontrar no mundo hoje, de obras de arte aos registros mais banais. Goste-se ou não, a onipresença das câmeras de celular é uma realidade irremediável.
Em “O Museu Imaginário” (1947), o francês André Malraux parece antecipar boa parte do fenômeno que vivemos hoje com a intensa circulação de imagens de obras de arte pelas redes sociais.
Ele define a ideia de imaginário associada aos museus como o resultado de diversos processos de metamorfoses. O primeiro ocorre quando os objetos são retirados de seu contexto original e levados para o museu, onde se desligam de sua função anterior e podem ser contemplados como obras de arte.
Essa mudança ocorre especialmente no século 19, com a criação dos museus públicos modernos. São esses espaços, para ele, que impõem uma nova relação com a ideia de obra de arte. “Um crucifixo românico não era, de início, uma escultura; a Madona de Cimabue não era, de início, um quadro; nem sequer a Atena de Fídias era, de início, uma estátua”, escreve.
Também no século 19 foi criada a fotografia, responsável por outro processo de metamorfose das obras. Nos livros de arte, elas passam a ser contempladas sem nenhuma indicação de escala; uma escultura monumental pode ser vista nas mesmas proporções de uma pintura pequena.
A era digital parece ter elevado à enésima potência esse processo de transformações. As obras, reproduzidas incessantemente pela câmera do celular e publicadas em redes sociais, passam a circular sem origem e destino definidos.
Para o americano David Joselit, autor de “After Art” (depois da arte), vivemos na era da imagem nômade —e esse processo de circulação é o contexto mais relevante hoje no campo artístico.
O historiador da arte argumenta que o conceito de aura de Walter Benjamin —espécie de essência de uma obra original, um “aqui e agora” da experiência contemplativa— já não é compatível com o atual cenário de difusão de imagens, especialmente com a internet móvel. Para Joselit, a ideia de que a arte pertença a um tempo e lugar específico é impensável hoje.
A obra de Carracci que aparece na colagem de Nino, por exemplo, foi encontrada em uma edição de bolso sobre pinturas italianas, um dos inúmeros livros acumulados na mesa de seu ateliê em São Paulo, de onde nascem suas colagens. Na imagem que ele criou e postou no Instagram, a pequena reprodução parece recobrar dimensão próxima ao formato de um quadro, com tamanho suficiente para esconder partes mais explícitas dos corpos nus da foto de trás. INSTAGRAMISMO Desde que foi lançado, em outubro de 2010, o Instagram vem transformando a maneira como nos relacionamos com as imagens. Os estimados 700 milhões de usuários do aplicativo compartilham cerca de 80 milhões de fotos diariamente.
Lev Manovich, teórico em cultura digital e um dos principais pesquisadores de redes sociais na atualidade, cunhou o termo “Instagramism” (instagramismo) para definir esse fenômeno contemporâneo, comparando-o, em termos de impacto e produção de linguagem visual própria, às revoluções trazidas pelos “ismos” dos movimentos modernos de vanguarda na virada do século 20, como o futurismo e o surrealismo.
A diferença, para ele, está no alcance que o instagramismo possibilita pela cultura do compartilhamento, permitindo autoria compartilhada na definição da linguagem.
A particularidade do Instagram em relação a outras redes sociais está na primazia da imagem e nas possibilidades que ela oferece para o usuário controlar a apresentação. Esse controle se dá tanto pelas escolhas no grid de três colunas —a definição da sequência de imagens se aproxima de um papel curatorial, transformando as interfaces pessoais em pequenas galerias— como pelas inúmeras ferramentas de edição disponíveis.
Contrariando, de certa forma, a ideia de espontaneidade que acompanhava o aplicativo em sua criação, postar uma foto passou a envolver uma série de decisões que terminam por moldar a identidade de um perfil e determinar as conexões que irá atrair.
Essas decisões, em geral, não são nada aleatórias: envolvem conhecimentos específicos difundidos pela cultura do “how-to”, vídeos e textos tutoriais que ensinam como criar um perfil esteticamente coerente, quais os melhores horários para postagens etc.
A pesquisa de Manovich, compilada no livro “Instagram and Contemporary Image” (Instagram e imagem contemporânea, 2017), é o primeiro trabalho multidisciplinar sobre a rede, combinando estudos de mídia, história da arte e análise de dados. Seu laboratório em Nova York conta mais de 16 milhões de imagens, arquivadas desde 2012.
Com esse acervo, Manovich desenvolveu projetos como “On Broadway” (2015) —instalação feita a partir de um mapeamento de postagens ao longo da avenida que atravessa Nova York, utilizando geolocalizadores— e “Selfiecity” (2014) —estudo sobre este tipo de foto tendo como material 3.200 selfies postadas em cinco cidades do mundo, incluindo São Paulo.
Como em outras redes sociais, o Brasil tem forte presença no Instagram: aparece como o terceiro país com maior movimentação (5,79%), atrás da Rússia (8,61%) e dos Estados Unidos (17,12%). SMARTPHONES A criação do Instagram também influenciou uma mudança importante na forma como os museus lidam com a popularização de smartphones nas galerias. Em 2011, o Metropolitan Museum of Art de Nova York retirou as placas que pediam aos visitantes para guardar os celulares. Aos poucos, a iniciativa foi adotada por instituições no mundo todo. Fotos e postagens das obras passaram a ser incentivadas como poderosa estratégia de marketing.
Se a invenção da fotografia no século 19 responde por enorme transformação na arte, a popularização de celulares com câmeras e da internet móvel vem promovendo mudança igualmente significativa.
Transformadas em uma nova imagem já no primeiro contato —o ato de ver e fotografar parece ter se tornado um só—, as obras existem cada vez mais em uma dimensão imaginária, reproduzidas a todo tempo. Por outro lado, pela lógica das redes, vê-las ao vivo em museus nunca foi tão importante —o que é um grande paradoxo, já que a contemplação dura em geral alguns poucos segundos, tempo suficiente para fazer um “story” ou postar a foto com o geolocalizador.
Nesse sentido, Malraux parece trazer contribuição interessante aos tempos atuais ao afirmar, ao contrário de Benjamin, que as reproduções não representam ameaça à ideia da aura. Para o francês, as obras sobrevivem ao esquecimento graças aos museus imaginários dos livros de arte. “[Aquela imagem] leva-nos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis; não a esquecê-las; e, sendo inacessíveis, que conheceríamos nós, sem a reprodução?” OBRA OU IMAGEM? Os artistas tampouco passaram incólumes por essas transformações. Alguns deles já utilizam o Instagram como meio específico para o desenvolvimento de trabalhos, ainda que nem sempre esteja claro o que distingue uma obra propriamente dita de uma simples imagem postada na rede.
“O Instagram é sempre a primeira exibição do meu trabalho”,