Perfis falsos são usados para afetar eleições
Empresa teria criado um exército virtual de ‘fakes’ para tentar manipular a opinião pública nas redes sociais
Não há indício de que os políticos soubessem da existência e do uso destes artifícios como forma de favorecê-los
São sete da manhã e um rapaz de 18 anos liga o computador em sua casa em Vitória, no Espírito Santo, e dá início à sua rotina de trabalho. Atualiza o status de um dos perfis que mantém no Facebook: “Alguém tem um filme para recomendar?”, diz. Abre outro perfil na mesma rede. “Só queria dormir a tarde inteira”, escreve. Ele intercala esses textos com outros em que apoia políticos brasileiros.
Esses perfis não tinham sua foto ou nome verdadeiros, assim como os outros 17 que controlava no Facebook e no Twitter em troca de R$ 1.200 por mês em 2014. Eram, segundo relata, perfis falsos com fotos roubadas, nomes e cotidianos inventados.
Evidências reunidas pela BBC Brasil ao longo de três meses, como mais de uma centena de perfis falsos no Twitter e no Facebook, e entrevistas com quatro ex-funcionários de uma agência com base no Rio —a Facemedia, registrada como Face Comunicação On Line Ltda—, apontam que a empresa teria criado um exército virtual de fakes para tentar manipular a opinião pública nas redes sociais desde 2012, mas principalmente no pleito de 2014.
A estratégia é similar à usada por russos para interferir nas eleições americanas e, ao lado das notícias falsas, representa uma crescente preocupação no mundo.
A empresa pertence ao empresário Eduardo Trevisan. Ele nega que tenha produzido perfis falsos. “Nós fazemos monitoramento e rastreamento de redes sociais.”
Segundo os entrevistados pela BBC Brasil, Trevisan contratou até 40 pessoas pelo Brasil, pagando entre R$ 800 e R$ 2.000 para a manutenção de perfis falsos.
Trevisan ganhou projeção com sua página Lei Seca RJ. Seguida por 1,7 milhão de usuários, alerta motoristas para locais de blitze no Rio.
Os depoimentos dos entrevistados e os temas dos tuítes e publicações no Facebook levam a nomes de 13 políticos que teriam sido beneficiados pelo serviço, entre eles os senadores Aécio Neves (PSDBMG) e Renan Calheiros (PMDB-AL) e o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE). RECICLAGEM Perfis supostamente falsos publicaram para Aécio, por exemplo, mensagens elogiosas durante debate com Dilma Rousseff (PT) na campanha de 2014: “Aécio é o mais bem preparado”. No caso de Renan, criaram uma hashtag para defendê-lo durante protestos em 2013, que pediam o impeachment do então presidente do Senado: #MexeuComRenanMexeuComigo. Um usuário que a utilizou foi “Patrick Santino” —um tuíte seu em apoio a Renan foi replicado 777 vezes. “Santino” usa a foto de um ator grego no perfil como se fosse sua.
Em alguns casos, o histórico revela “reciclagem” de perfis, apoiando diferentes candidatos ao longo do tempo. Em 5 de outubro de 2014, “Fernanda Lucci”, que usa no perfil uma foto de Petra Mattar, cantora e filha do ator Maurício Mattar, escreve ter dado seu voto para Renan Filho (PMDB), então candidato ao governo de Alagoas.
Já dia 24 de outubro, escreve: “Dia 26 quero #Eunicio15 para mudar CE”, em referência ao senador Eunício Oliveira (PMDB), que na época concorria ao governo do Ceará.
Dois meses antes, ela elogiava Paulo Hartung (PMDB), então candidato ao governo do Espírito Santo, por sua performance em um debate.
Não há nenhum indício de que os políticos citados sabiam da existência e do uso de fakes nas suas redes sociais como parte de um serviço para favorecê-los. CIBORGUES Pesquisadores identificam esse fenômeno como “ciborgues”. São uma mistura de pessoas reais e “máquinas”, com rastros de atividade mais difíceis de serem detectados por computador.
Os funcionários, jovens chamados “ativadores”, trabalhavam de casa e eram monitorados por Skype.
Recebiam de profissionais mais graduados uma “ficha técnica” e perfis prontos do que chamavam de “personas”. Continham foto, nome e história de cada um —de onde era, se era casado, se tinha filhos e quais eram seus gostos, hobbies e profissão.
Durante debates, colocavam o nome do seu candidato entre os assuntos mais comentados do Twitter. No Facebook, chegaram a fazer um grupo contra um político, convidando pessoas reais para participarem.
Um tipo de atuação comum, segundo os entrevistados, era deixar comentários em sites de notícias e votar em enquetes como as do site do Senado. “Às vezes, dez pessoas ficavam votando em determinada opção durante oito horas do dia.” PAGAMENTOS A empresa de Trevisan recebeu R$ 360 mil do Comitê Nacional do PSDB para a campanha presidencial em 2014 pela “prestação de serviços de marketing e comunicação digital”, segundo consta da prestação de contas do partido.
A Facemedia também recebeu R$ 200 mil de Renan Filho (PMDB) em 2014, então candidato ao governo de Alagoas, e R$ 30 mil do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Vital do Rêgo Filho (PMDB), então candidato ao governo da Paraíba, de acordo com os dados públicos.
Os mais recentes pagamentos vieram da cota parlamen- tar do gabinete da deputada federal Laura Carneiro (PMDB-RJ). A empresa de Trevisan recebeu R$ 14 mil por mês por “divulgação da atividade parlamentar por meio da diagramação, manutenção e alimentação das suas mídias sociais (Instagram, Facebook, Twitter)” de fevereiro a setembro deste ano, totalizando R$ 112 mil.
As datas coincidem com o período de atividade de um grupo de perfis falsos identificados pela BBC Brasil atuando na página da deputada.
Um ex-funcionário de Trevisan fala de outros políticos que também teriam contratado o serviço. Todos foram citados em algum momento pelos perfis falsos identificados pela BBC Brasil.
São eles: o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), os senadores Renan Calheiros (PMDB-AL), Eduardo Braga (PMDB-AM) e Ricardo Ferraço (PSDB-ES), o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB), o ex-prefeito de Vila Velha (ES) Rodney Miranda (DEM), o secretário municipal de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação do Rio, Índio da Costa (PSD), o ex-senador Gim Argello (DF) e o ex-deputado estadual Felipe Peixoto (PSBRJ).
Wallim Vasconcelos, que foi candidato à presidência do Flamengo, também é citado pelo ex-funcionário e foi tema de tuítes de perfis considerados falsos.
Eles negaram ter conhecimento sobre qualquer uso de perfis falsos nesse contexto.
Entre março e julho de 2014, a Facemedia recebeu R$ 504 mil da agência PVR Propaganda e Marketing Ltda, de Paulo Vasconcelos, marqueteiro de Aécio. O pagamento foi descrito em um relatório produzido pelo Conselho de Controle de Atividades Financeira (Coaf) em julho deste ano. A agência tinha entre seus clientes o PSDB e a J&F, controladora da JBS. A JBS foi identificada em tuítes de ao menos oito fakes reunidos pela BBC Brasil e também citada por um ex-funcionário como cliente da Facemedia.
A empresa teria contratado os serviços da agência para “botar pressão” pela aprovação de projeto de lei que exigisse dos abatedouros no Brasil um selo mais rígido, favorecendo o frigorífico.
Em 2014, “Letícia Priori” elogiou Aécio, Renan Filho e Eunício no Twitter e no Facebook. E recomendou um prato a seus seguidores: “Hmmmm, vcs já viram essa receita da friboi? Carne ao molho caipira!”. A foto de “Letícia” pertence a uma mulher morta em 2013.
A criação de perfis falsos é crime de falsa identidade. A pena é detenção de três meses a um ano ou multa. A reforma eleitoral aprovada em outubro proíbe “a veiculação de conteúdos de cunho eleitoral” por meio de “cadastro de usuário de aplicação de internet com a intenção de falsear identidade”.