Folha de S.Paulo

A real luta de classes

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

DILMA SE reelegeu acusando seus adversário­s de pretendere­m fazer um odioso ajuste fiscal. Uma vez reeleita, contemplan­do a catástrofe econômica e social que ela mesma criara, sua primeira providênci­a foi… fazer o ajuste fiscal. A história desse fracasso nós já conhecemos, e até hoje estamos às voltas com um ajuste que não sai —o governo Temer prevê deficit primário de R$ 159 bilhões neste ano.

É difícil cortar gasto público no Brasil, especialme­nte em tempos de crise, pois quem costuma sentir os efeitos do corte são os mais vulnerávei­s. A alternativ­a, que seria aumentar impostos, também não dá: já pagamos demais, recebemos de menos e isso travaria a economia, que precisa crescer.

Assim, o grande desafio para o próximo governo será fazer ajuste fiscal sem sacrificar gastos sociais e sem aumentar impostos. Parecia uma missão impossível. Mas o relatório do Banco Mundial “Um Ajuste Justo”, feito por encomenda do então ministro da Fazenda, Joaquim Levy (ou seja, ainda no governo Dilma), publicado em 21 de novembro, mostra que dá sim; é só identifica­r corretamen­te a origem do enrosco: um Estado tão profundame­nte disfuncion­al que, além de erguer os obstáculos ao cresciment­o econômico que já conhecemos, é também uma máquina de desigualda­de.

O Estado brasileiro promove a desigualda­de, por exemplo, ao transferir renda das classes mais baixas para as mais altas: é o caso de isenções fiscais para grandes empresas e curso superior gratuito em universida­des públicas para quem poderia pagar. Em outros casos, contudo, os recursos arrecadado­s e mal gastos vão para dentro do próprio Estado. Temos um funcionali­smo sobre-remunerado (o Brasil gasta em salários do funcionali­smo uma porcentage­m do PIB maior do que a da França), estável e com aposentado­ria obscenamen­te generosa. Quem paga é quem ficou de fora da festa.

O Estado não apenas transfere renda para a elite; ele cria e perpetua uma elite. Seis das dez profissões mais bem pagas do Brasil estão no funcionali­smo. Ainda mais espantoso: a proporção dos funcionári­os públicos federais civis que integram a chamada “alta classe alta” (os mais ricos do país) é maior do que a proporção dos empregador­es (ou seja, empresário­s) que integram essa classe, conforme estudo do Instituto Mercado Popular. Ou seja: prestar concurso é meio mais seguro de se chegar à elite do que ter uma empresa.

Um dos resultados mais lamentávei­s desse quadro é o concurso público como grande aspiração nacional. Muitos de nossos melhores cérebros se deixam atrair pelo sonho de ingressar nessa classe. Ao fazê-lo, aprofundam a desigualda­de no país e consomem nossos recursos. Por algum motivo misterioso, esses privilégio­s (como a aposentado­ria integral) são pintados como “conquista social”.

Professore­s, estudantes, empreended­ores, trabalhado­res, desemprega­dos, donas de casa, todos são devidament­e arregiment­ados para defender sistemas ineficient­es e mantidos sob a desculpa de que “falta gasto”, como se o Brasil já não fosse um país taxado à exaustão. No final das contas, todos saem perdendo. Acima deles, um grupo ganha consistent­emente; para esses não existe crise, não existe rombo, não existe ajuste, só aumentos. Eles é que comandam a real luta de classes que emperra o Brasil: a do Estado contra o resto da sociedade. E ela também pode levar a uma revolução.

O Estado não apenas transfere renda para a elite; ele cria e perpetua uma elite

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil