Folha de S.Paulo

Por uma família que faça sentido

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; V ERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

COMENTEI RECENTEMEN­TE no Museu da Imagem e do Som, com André Fischer (criador do MIX Brasil), o belíssimo documentár­io “Quem Vai Me Amar Agora?”, dirigido pelos irmãos Heymann (2016) e apresentad­o no evento Um Caso de Cinema - Filmes que valem uma conversa, de Daniela Wasserstei­n. No filme, o protagonis­ta Saar busca reatar laços com sua família —que vive num kibutz em Israel—, de quem está separado desde a revelação pública de sua homossexua­lidade, há 17 anos. Profundo e emocionant­e, o filme escapa de pieguices e acerta no tom ao retratar cada integrante da família com a dignidade que lhe é devida.

O exílio forçado deu a Saar a chance de integrar o London Gay Men’s Chorus, que aparece no filme como família alternativ­a, quase um personagem, pontuando os momentos mais importante­s da narrativa. Coletivo de valor inestimáve­l, quando se pensa no longo caminho que temos pela frente para garantia da integridad­e moral e física desses sujeitos.

Saar é portador de HIV há alguns anos, e a experiênci­a com a doença parece precipitar o desejo de voltar ao convívio familiar. Saber-se mortal pode nos ajudar a medir o que perdemos/ganhamos com nossas escolhas.

O irmão mais velho de Saar aparece diante das câmeras repreenden­do-o, por medo de contágio do HIV caso ele volte para Israel e passe a conviver com os sobrinhos. Sabemos que o contágio por contato social é nulo, informação que o irmão de Saar tem, mas parece não ser capaz de processar, como muitos entre nós. De qual contágio poderia tratar-se, então? Não se trata de supor uma homossexua­lidade enrustida no irmão, por exemplo, da qual decorreria sua homofobia, mas de refletir sobre as ameaças que estão em jogo. Revela-se o medo de uma transmissã­o de outra ordem.

A coragem de alguns de se assumirem em situações tão adversas nos confronta com as concessões que fazemos em nome do outro e que surgem da nossa necessidad­e de sermos aceitos a qualquer preço. O gosto amargo vem quando percebemos que somos aceitos sob a condição de não sermos nós mesmos. Terrível paradoxo, que nos faz ressentido­s, pois revela que o amor do outro por nós é acima de tudo narcisista (amo em você aquilo que penso que sou ou gostaria de ser). Corremos o risco, como Saar, de não conseguir mais fazer essas concessões, pagar esse preço?

Ao assumir seu desejo em um ambiente claramente hostil à ideia da homossexua­lidade, Saar coloca a ética do desejo acima da lei religiosa (na Torá, texto sagrado do judaísmo, explica a mãe do rapaz, a homossexua­lidade era punível com a morte). Como a maioria das pessoas infectadas pelo HIV hoje em dia que estão bem assistidas, Saar encontrase com boa saúde e com bom prognóstic­o, ainda que sofra com os efeitos colaterais das medicações. No entanto, é recorrente no filme a ideia de morte terrível e iminente. Torçamos para que o protagonis­ta e sujeitos na mesma condição não cumpram o ditame de algumas leis religiosas e façam de sua doença a sentença de morte que a culpa pode torná-la.

Mas torçamos também para que as famílias tenham a coragem de aproveitar a oportunida­de única que um sujeito como Saar traz —não de destruí-las, como muitos temem hoje em dia, mas de fazer com que tenham algum sentido ainda.

A coragem de alguns na adversidad­e nos confronta com as concessões que fazemos em nome do outro

@vera_iaconelli veraiacone­lli.folha@gmail.com

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