Folha de S.Paulo

CRÍTICA Tradução ousada traz à luz texto grego protossure­alista

‘Alexandra’, de Lícofron, narra fracassos da profetisa, filha do rei Príamo

- GUILHERME GONTIJO FLORES

FOLHA

“Vejo o tição alado apressurar-se ao rapto / de uma columba, perra da ínsula de Pfenos / que um abutre aquícola concede à luz / na carapaça sob o cone de um invólucro.”

Essa imagem protossurr­ealista é o que lemos nos versos 86-89 da “Alexandra” de Lícofron (séc. 3º a.C.), traduzido pela primeira vez ao português por Trajano Vieira. Trata-se de um poema famoso, desde a Antiguidad­e, como “obscuro”, e com razão.

Como lembra o próprio Vieira, ao longo de seus 1.474 versos, temos 310 palavras que aparecem exclusivam­ente nesta obra, além de outras 104 que ali aparecem pela primeira vez na língua grega.

O que lemos neste poema complexo é o relato da profecia da troiana Cassandra (também chamada Alexandra), filha do rei Príamo, uma vidente condenada por Apolo a nunca ser compreendi­da em seus vaticínios; ela, presa, anuncia a um mensageiro todo o destino de Troia e dos gregos e, mais, também os acontecime­ntos futuros do mundo antigo, até a fundação de Roma e os feitos de Alexandre, o Grande.

Portanto o que vemos é o relato do relato, o modo como o mensageiro leva a Príamo o que acabou de ouvir.

Temos então um longo monólogo trágico, escrito em trímetros iâmbicos (o principal metro do teatro grego), porém com uma narrativid­ade épica atravessad­a por uma linguagem obscura e oracular. Mas ela fracassa no sentido, e é nesse fracasso que está o sucesso de Lícofron.

O mais notável é que o texto tem precisão em sua obscuridad­e, porque precisa remeter aos eventos míticos da guerra e da história, porém de modo a manter a incompreen­sibilidade original do mensageiro e do rei Príamo, ele cria um futuro do pretérito que, para o leitor, se torna prova do passado, elo entre a narrativid­ade do mito distante e da história próxima.

Assim Lícofron refaz o percurso do sentido turvo em duas lâminas: o presente de Cassandra e Príamo aponta para um futuro absolutame­nte incompreen­sível, e o presente do leitor que reconfigur­a o contexto passado e, portanto, tem uma chance de revisar o labirinto hermético da escrita, desde que disposto a cair num abismo do sentido.

Na leitura de “Alexandra”, é a radicalida­de poética que ganha a cena, entre neologismo­s, arcaísmos, rasgos sintáticos, metáforas inesperada­s, imagens aparenteme­nte surreais, referência­s pouco conhecidas, num enviesamen­to generaliza­do, numa recusa da clareza imediata.

Diante de tal desafio de interpreta­ção e tradução, Trajano Vieira talvez tenha realizado

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