Folha de S.Paulo

CRÍTICA Woody Allen ergue seu palácio da memória

‘Roda Gigante’, que sai no Brasil em 28/12, fala de mulher que sofre porque amante se apaixona por sua enteada

- MANOHLA DARGIS

“Roda Gigante”, o filme mais recente de Woody Allen, é uma de suas contribuiç­ões mais infelizes ao cinema.

O longa [com estreia prevista para 28/12 no Brasil] conta a história de uma mulher casada, cujo caso com um Romeu local sai dos trilhos quando ele começa a dar atenção à enteada dela.

O coração quer o que o coração quer, como disse Allen certa vez para explicar seu caso com Soon-Yi, enteada de sua ex-mulher Mia Farrow e hoje sua mulher. Colocar qualquer filme no divã é má ideia, mas e se o filme se deitar sozinho no divã?

“Roda Gigante” devolve Allen a Coney Island, a terra em que seu alter ego, Alvy Singer, o narrador de “Annie Hall”, passou a infância.

No filme, a mulher casada e triste, Ginny (Kate Winslet), mora em um apartament­o com vista direta para a imensa roda-gigante do parque.

O brinquedo obscurece sua vista do oceano, configuran­do horizontes literalmen­te es- treitos, e ilumina o interior dilapidado do apartament­o e as vidas igualmente desgastada­s de seus habitantes.

Ginny não está completame­nte acabada, mesmo que a câmera persista em mostrála de modo nada lisonjeiro.

Ela trabalha em uma barraca que vende frutos do mar e, em casa, precisa lidar com o marido resmungão e grosso, Humpty (Jim Belushi), e com o filho, Richie (Jack Gore).

Assim, quando Mickey (Justin Timberlake), salva-vidas que se descreve como romântico, dá atenção a Ginny, ela cai em seus braços.

“Roda Gigante” é mais ou menos a história de Ginny, mas ela não toma o controle de seu destino. O filme é narrado por Mickey, que fala diretament­e para a câmera. Ele tem ambições literárias, como gosta de lembrar.

Por algum tempo, Mickey alivia a vida de Ginny, pelo menos até a chegada de Carolina (Juno Temple, ótima), filha de um casamento anterior de Humpty, fugindo de seu marido, um gângster.

Mais ou menos como a roda-gigante do título, o filme continua girando, mesmo que não vá para lugar algum.

Esse é o segundo filme de Allen com o diretor de fotografia Vittorio Storaro, que parece ter se divertido girando cores e a câmera. Isso confere fluxo visual à narrativa —e Storaro faz os olhos do espectador seguirem a dança de seus claros e escuros.

Algumas das tomadas lembram o lado mais suave do technicolo­r, enquanto as cenas de saturação violenta remetem à paleta vibrante do movimento Der Blaue Reiter.

Allen certamente mantém o espectador ocupado com todas essas cores, tons, influência­s, complicaçõ­es, estereótip­os e histrionis­mo, mas sem grande propósito.

Como é sempre o caso em seus filmes, os atores parecem contribuir com aquilo

Kate Winslet como Ginny

que trouxeram de casa, e por isso os melhores deles —no caso a inestimáve­l Winslet— se saem bem, enquanto o restante faz o que pode.

Ginny, que quer algo mais do que trabalhar em uma barraca de frutos do mar e enfrentar brutalidad­es —e é punida por seus anseios—, poderia ter se transforma­do em um clichê monocórdio. Mas Winslet empresta à sua sofri- da personagem uma vida febril. Ela transmite muito mais com um de seus olhares do que todos os diálogos de Allen ou as cores de Storaro.

Em dado momento, ela declara que, “quando o assunto é amor, muitas vezes somos nosso pior inimigo”. E isso nos leva a imaginar, e não pela primeira vez, o que Allen, que sempre gostou de misturar fato e ficção, acredita estar fazendo nesse filme.

Ele não poderia prever que seu nome estaria no noticiário por acusações de abuso sexual no mundo do entretenim­ento. Mas como não pensar nele, nesse contexto?

Em 1993, o cineasta foi acusado de molestar sua filha Dylan Farrow. Ele sempre se declarou inocente e jamais foi processado, mas a acusação, e o desconfort­o por seu casamento com Soon-Yi, passaram a pender sobre ele como uma nuvem maligna.

Ainda que incomodado­s, os críticos muitas vezes optaram por ignorar seu passado, mas ele parece perversame­nte determinad­o a invocá-lo. PAULO MIGLIACCI

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