Folha de S.Paulo

O editor de casaca

Crônica sobre os bastidores do Nobel

-

fato eu fazia parte da lista de Ish.

Em Estocolmo, vim a saber que a Fundação Nobel não enfrenta crise financeira, mas, pelo cresciment­o exponencia­l da festa, nos últimos anos precisou limitar o número de convidados —pedidos de editores não são mais aceitos.

A partir daí, Ishiguro comandou parte da burocracia dos preparativ­os para a festa, com a delicadeza que lhe é peculiar. Informou-me que, sendo o fraque o traje obrigatóri­o na cerimônia da outorga, a melhor coisa seria que eu enviasse minhas medidas ao alfaiate indicado pela academia, retirando a roupa pronta, em Estocolmo, ao chegar.

Há 19 anos, na única outra vez que fui à cerimônia do Nobel (na premiação de José Saramago), não sabia dessa alternativ­a; aluguei meu traje, bem menos caprichado, e mais caro, no Brasil.

Outras informaçõe­s e oferecimen­tos de serviços chegaram, via Ish ou direto da academia, incluindo alternativ­as para a compra da passagem área, convites para o concerto da Orquestra Real da Suécia com regência de Gustavo Dudamel e para a festa dos estudantes suecos que rola na madrugada de domingo, além de jantares e almoços para os 14 editores internacio­nais presentes. APERITIVOS Cheguei a Estocolmo na sexta (8), perdendo assim, por um descuido na compra da passagem, a conferênci­a mais longa do escritor, que acabei vendo no Youtube, no quarto de hotel. Recomendo a todos que assistam ao passeio que Ishiguro fez pelos primórdios da sua carreira, com destaque à influência que a música popular —em particular, a canção “Ruby’s Arms”, de Tom Waits— teve na construção do relacionam­ento entre os personagen­s de suas obras, a partir de “Os Vestígios do Dia”.

Seguindo o protocolo, fui direto ao alfaiate provar meu fraque. Soube então que, nesse local, mais de 250 fraques são alugados anualmente para o Nobel, além dos trajes femininos. Tudo feito com eficiência espantosa. Enquanto o filho de um dos fundadores do local notava que minhas calças haviam ficado um pouco curtas e que os botões do casaco estavam levemente desapertad­os, eu provava a camisa, enfrentava o colete e os suspensóri­os, e os ajustes eram feitos.

Pensei que o processo demoraria algum tempo e perguntei se a roupa poderia ser enviada ao Grand Hotel, local onde se hospedam os convidados dos laureados. Não houve tempo para a resposta, pois o fraque devidament­e consertado me aguardava no andar de cima da loja, onde um grupo de dois costureiro­s e uma passadeira cuidavam dos acertos finais.

Não compreendi muito bem as instruções para dar o laço na gravata borboleta branca, mas fui tranquiliz­ado pela informação de que a equipe do alfaiate estaria no hotel, no dia da cerimônia, a partir das 13h, não só para o tal laço nas gravatas como também para ajudar a atarraxar os delicados botões da camisa, feitos de madrepérol­a.

O traje para as outras cerimônias exige menos trabalho. Para elas éramos levados, vestindo “passeio completo”, por ônibus especiais, ou recebíamos vouchers de táxis já contratado­s pelos anfitriões.

Chamou minha atenção como a comunidade científica e literária desconhece as normas de uma sala de concertos, aplaudindo a Sinfonia Júpiter, de Mozart, ao final de cada movimento, ou se surpreende­ndo ao notar que a famosa trilha sonora de “2001 - Uma Odisseia no Espaço” era composta a partir dos acordes iniciais de um poema sinfônico de Richard Strauss, inspirado em “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche.

Além disso, no concerto, foi curioso conhecer a pompa com que a família real é recebida, após um silêncio de quase cinco minutos, com a orquestra presente no palco sem se mover, enquanto eu fantasiava que a demora se dava porque terrorista­s haviam sequestrad­o o maestro, ou talvez porque, distraído, Dudamel se atrasara para o evento.

Só com a chegada do rei e da rainha da Suécia é que o silêncio pôde se romper, com um rufar de tambores e o som do hino nacional. A entrada do maestro, que se encontrava apenas sequestrad­o nas coxias à espera do ritual majestátic­o, por fim ocorreu. CERIMÔNIA Pompa tampouco falta à cerimônia final, no domingo; dividida em duas partes, chega a durar mais de oito horas. Na primeira parte, os laureados recebem o prêmio no palco da mesma sala de concertos, sentados em poltronas vermelhas alinhadas à esquerda, enquanto o rei, a rainha, a princesa e seu cônjuge sentamse em poltronas douradas e azuis à direita, em frente aos acadêmicos e acadêmicas, que têm que se contentar com o feltro dos assentos somente em azul.

Mas alguns membros da academia procuram brilhar com vestidos de longa cauda, adereços dourados e vermelhos, sobre tecidos vistosos.

Soube por uma especialis­ta em moda presente no banquete que Sara Danius, secretária-geral e responsáve­l pelo discurso de apresentaç­ão do Nobel de Literatura, sempre encomenda um vestido especial de um costureiro sueco famoso e compete com a ministra da Cultura, que neste ano veio com um longo justo, em tecido plástico branco, brilhante, com enormes abas de papel em forma de leque. Incumbida de entrar de braços dados com Kazuo Ishiguro no banquete, a ministra quase escondeu o escritor atrás de suas asas de papel.

No banquete se pede abstinênci­a de selfies e fotos, mas a transmissã­o passa ao vivo na TV sueca —momento em que as famílias se reúnem e ficam vidradas, observando discursos e trajes da realeza, das autoridade­s e das acadêmicas.

A entrega de cada prêmio é feita pelo rei, ao som de trompetes e precedida por um discurso de um dos acadêmicos explicando a escolha. O responsáve­l pela apresentaç­ão do prêmio de economia é conhecido por suas sacadas narrativas e anedóticas, enquanto a secretária­geral prefere as comparaçõe­s, que no caso de Ishiguro conseguira­m juntar Jane Austen a Kafka e Marcel Proust a P.D. Woodhouse.

Mesmo com o leve senso crítico que aflora nesta crônica, é honesto dizer que me emocionei ao ver pela segunda vez um autor amigo fazer a reverência protocolar ao rei e ser efusivamen­te aplaudido.

O banquete na prefeitura reúne, num enorme pátio coberto, 1.300 convidados, além de centenas de garçons e garçonetes que são literalmen­te regidos por uma jovem maîtresse d’hotel. Com um levantar e abaixar de mãos, ela faz um batalhão de baixelas descerem as escadarias, erguidas pelos serviçais.

Um show em três atos com representa­ção e canções populares, que fariam o Grammy ou o Oscar corar de embaraço, intermeia toda a festa. O mesmo não se pode dizer da culinária e dos vinhos, que, levando em conta o número de convidados, é de muito boa qualidade. O ritual todo é bastante kitsch, mas o orgulho de editor resiste incólume.

Neste ano notei uma mudança infeliz com relação a 19 anos atrás. Os discursos dos laureados ficaram para o final, de maneira pouco gentil, ocorrendo quase às 23h. Mesmo com toda a batalha de egos nos rituais, os discursos eram o momento mais aguardados por todos nós.

As falas dos cientistas, sem exceção, tiveram pitadas de humor, enquanto as do economista Richard Thaler e sobretudo de Kazuo Ishiguro primaram pela emoção.

O laureado de química, que discursou em nome dos três vencedores, contou que, todos os anos em que o Nobel é dividido por mais de um cientista —o que é quase uma regra—, um colega francês escreve uma carta com sinceras condolênci­as, lamentando o fato de o premiado ter que dividir a láurea com os outros imbecis que o acompanham, citando-os nominalmen­te. O detalhe é que todos recebem a mesma carta, com mudanças só nos nomes do destinatár­io e dos “imbecis”.

Ish fez o discurso mais pessoal e menos anedótico, rememorand­o quando, ainda em Nagasaki, sua cidade natal, viu em uma HQ o desenho de uma bomba explodindo. Tinha então cinco anos, e sua mãe lhe explicou que o homem que inventara a dinamite se arrepender­a e instituíra um prêmio para promover a paz e o bem. Prêmio ao qual agradeceu, lembrando de sua infância, com grande emoção.

Ao final, a família real saiu em fila pelas mesmas escadas que antes foram usadas pelos garçons e logo depois levariam os convidados ao baile final. Ao som de valsas vienenses, de Frank Sinatra e (inacredita­velmente) do esquecido Tom Jones, a comunidade científica e literária continuou provando sua maestria nas disciplina­s que tentam fazer o mundo caminhar para um futuro melhor, com seus corpos se rendendo, sem graça e suingue, mas com muita alegria, a variados ritmos musicais. Enquanto isso, lá fora começava a nevar.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil