Folha de S.Paulo

A raça negra iria desaparece­ndo sob a coação do progressiv­o clareament­o da população do país”.

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ANACRONISM­O Como argumentei em “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” (2007), é uma visão unilateral e anacrônica, para dizer o mínimo. Tanto do ponto de vista histórico, quanto do genético. Por várias razões. Afinal, quem quer que conheça a história de nosso passado escravista sabe que mulatos não foram somente capitães-do-mato ou feitores.

Muito pelo contrário: participar­am de rebeliões contra a elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre outras coisas, formaram a liderança da Revolução dos Alfaiates (1798), centrada na luta contra a escravidão e o colonialis­mo —liderança que foi presa e enforcada em praça pública.

Além disso, não só a miscigenaç­ão não é —nem pode ser— um processo unilateral­mente embranquec­edor, como tal projeto de branquear a população foi coisa datada e exclusiva da classe dirigente —e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua maior medida, à revelia do Estado e dessa classe.

Por fim, é mais do que anacrônica a suposição de Abdias que sustenta o feminismo negro. A mestiçagem, hoje em dia, não pode mais ser vista como violência contra a mulher negra. Primeiro, porque temos uniões de homens pretos com mulheres brancas. Segundo, porque a união ou o casamento de um homem branco com uma mulher preta não se dá mais sem seu assentimen­to, cumplicida­de ou mesmo iniciativa. Melhor não falsear a realidade com discursos “historicis­tas”.

Mas é impression­ante, paradoxal mesmo, ver como a atual ideologia racialista, que se alastrou pelo país a partir principalm­ente do ambiente acadêmico, repete ao pé da letra a velha miragem do “racismo científico” do século 19, que acreditava na fantasia de uma desigualda­de essencial e insuperáve­l entre as raças.

Naquela época, os teóricos do “racismo científico” defenderam a tese totalmente sem pé nem cabeça (que agora vemos retomada) de que era possível branquear a população brasileira através da imigração e da miscigenaç­ão, já que neste processo prevalecer­iam sempre os genes da “raça superior” —a branca, naturalmen­te.

Em “Sur les Métis au Brésil” (sobre os mestiços do Brasil), texto apresentad­o em 1911 no primeiro Congresso Internacio­nal das Raças, realizado em Londres, o antropólog­o Batista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou até a fazer suas contas na ponta do lápis. Segundo ele, o branqueame­nto do povo brasileiro estaria concluído na segunda década do século 21.

E sempre que recordo isso, lembro também uma deliciosa boutade do mestiço brasileiro Chico Buarque de Hollanda, falando da obrigação em que estávamos de promover o casamento do goleiro Taffarel e da apresentad­ora Xuxa, a fim de tentar evitar a extinção da raça branca no Brasil. ATAQUES Agora, como disse, os racialista­s repetem o dogma que se revelou um fracasso histórico espetacula­r. E adiantam outros passos esdrúxulos, desde que a paranoia político-social tem seus próprios desenhos e suas próprias regras.

Com medo de um branqueame­nto final e total do povo brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo grosso contra relações amorosas e sexuais que envolvam pretos e brancos. E não é de hoje. Já na década de 1970 esse discurso tinha aflorado com nitidez.

O próprio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si mesmo nem discutia seu próprio cotidiano, era discreta mas severament­e criticado por diversos ativistas político-acadêmicos do movimento negro, em consequênc­ia do seu casamento com uma branca americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem ruinzinho, por sinal) “Pan-Africanism­o na América do Sul: Emergência de uma Rebelião Negra” (1981).

E Abdias, embora defendesse a tese estapafúrd­ia de que miscigenaç­ão era genocídio, nunca se deu ao trabalho de analisar o seu caso pessoal. Sempre fez de conta que não ostentava uma ancestrali­dade mista —birracial, no mínimo— e que não vivia com a mulher que vivia. Mas vamos deixá-lo de parte por ora.

O que quero salientar é o ponto a que chegaram nossos atuais “neonegros” (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos). Já faz tempo que, em seu afã de combater a mescla interracia­l, vêm falando de um tal de “amor afrocentra­do”, rótulo ideológico que mais não é do que um eufemismo para a segregação erótica.

Tem mais. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem. No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificad­oras, senhoriais. Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário: em vez de rediscutir em profundida­de a questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua deixou de existir.

Mas continuamo­s mestiços. E a mestiçagem não é indestacáv­el da fantasia da democracia racial. Recusar-se a usar a noção é como se recusar a falar de raça por causa do uso que os nazistas fizeram do conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem. Se não entendermo­s nossas misturas, nunca entenderem­os a nós mesmos.

E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o conflito, nem a discrimina­ção. A melhor prova disso é o Brasil. Aqui, uma coisa é certa. Não pode existir delírio ideológico maior, entre nós, do que fantasiar a inexistênc­ia de mestiços. Mestiços nascem diariament­e de uma ponta a outra do país.

Mas vamos finalizar. Se a mestiçagem diminui a população negra, também diminui a população branca. É curioso que “racistas científico­s” e racialista­s atuais acreditem no contrário, que a miscigenaç­ão branqueia, mas não escurece. A verdade é que o processo biológico não é (nem poderia ser) de mão única, privilegia­ndo magicament­e os brancos.

Um estudioso negroafric­ano menos delirante, Kabengele Munanga, em “Rediscutin­do a Mestiçagem no Brasil” (1999), vai ao ponto: “(...) a realidade empírica, crua, observada por todos, é a de que o Brasil constitui o país mais colorido do mundo racialment­e (...). Fica insustentá­vel a crença no aniquilame­nto do contingent­e negro, por um lado, e no branqueame­nto completo de toda a população brasileira, por outro (...). O colorido da população desmente as previsões do modelo”.

Claro. A verdade é que, se um dia não houver nenhum negro no Brasil, também não haverá nenhum branco. E assim me vejo na obrigação de repetir aqui uma observação (óbvia) que já fiz inúmeras vezes: se for pelo caminho da miscigenaç­ão, o genocídio do negro será inseparáve­l do suicídio do branco.

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