Folha de S.Paulo

AMOR COM OUTRA PESSOA

Além de missivas, poeta enviou versos românticos para inglesa que era alvo de ciúmes da primeira namorada

- MAURÍCIO MEIRELES

FOLHA

Fernando Pessoa não entrou para a história como o protagonis­ta das maiores aventuras amorosas. A datilógraf­a Ofélia Queiroz (19001996), que guardou as cartas do poeta em uma caixa de bombons e só revelou seu namoro com ele nos anos 1970, sempre foi tida como seu único amor.

Mas parecia improvável que o autor tivesse amado só uma mulher —e era mesmo, como agora sugere um conjunto de cartas inéditas recém descoberta­s. Encontrada­s por José Barreto, pesquisado­r do Instituto de Ciências Sociais da Universida­de de Lisboa, elas levantam a hipótese consistent­e de que o poeta morreu apaixonado por uma escocesa chamada Madge Anderson, cunhada de seu meio irmão.

Um artigo com a pesquisa está na nova edição da revista “Pessoa Plural”, publicada pela Universida­de Brown, nos Estados Unidos. Curioso notar que, nas cartas de Ofélia, a datilógraf­a já mostrava ciúmes de “uma inglesa” —e Madge vivia em Londres.

“Nunca entendi [a afirmação de Pessoa só ter namorado Ofélia]. Por meio das cartas deles, descobrimo­s um homem certamente capaz de amar”, diz Barreto.

“Ofélia era uma mulher simplória, tradiciona­l, muito jovem, pouco culta. Madge era uma mulher muito mais inteligent­e, mais adequada ao perfil do Pessoa, capaz de uma relação afetiva adulta, não uma coisa assim infantilói­de como a Ofélia.”

Na Segunda Guerra Mundial, Madge trabalhava para o serviço secreto britânico traduzindo mensagens intercepta­das dos alemães.

O pesquisado­r encontrou três cartas inéditas e um cartão postal escritos em inglês, de 1935, que ainda estão em poder dos familiares do poeta e não foram para o acervo dele na Biblioteca Nacional de Portugal. A documentaç­ão revela ainda que pelo menos uma carta se perdeu. AFUNDAMENT­O A correspond­ência mostra que Madge esteve algumas vezes em Portugal para visitá-lo —na primeira delas, ele pede desculpas por ter desapareci­do, por conta de um “afundament­o” (possivelme­nte uma de suas muitas crises depressiva­s):

“Lamento muito tudo o que se passou, isto é, a minha descortesi­a em ter desapareci­do, mas não perdeste nada com o meu desapareci­mento, que foi a melhor acção que alguns resquícios de decência poderiam ditar a um homem praticamen­te perdido para tudo isso.”

Depois, envia o poema em inglês “Delirium Tremens” para Madge: “Não, nada é certo. / O teu amor poderia/ Tornar-me melhor do que eu/ Posso ser ou tentar”.

Na carta em que vão esses versos, Pessoa diz que eles foram escritos em abril, o que segundo ele seria um mês antes da chegada de Madge a Portugal —talvez tentando afastar a possibilid­ade de ser ela a motivadora da escrita.

Mas a lista de passageiro­s do Rotterdam Lloyd, navio que a levou a Lisboa, e uma carta dela dizendo “faz sete meses que nos vimos” mostram que os dois se encontrara­m justamente naquele mês.

Outra evidência é o fato de os poemas de amor em primeira pessoa serem poucos na obra do poeta —mas se intensific­am no fim da vida.

O último poema que escreveu, em inglês, uma semana antes de morrer, diz: “Mas o meu pobre coração anseia/ Por algo que está longe./ Anseia só por ti,/ Anseia pelo teu beijo”.

Embora seja controvers­o analisar a obra de um autor a partir de sua biografia, o fato levou Ángel Crespo, biógrafo espanhol, a ser o primeiro a levantar a hipótese, em 1989, de que Pessoa estivesse apaixonado por alguém antes de morrer —mas não chegou a descobrir por quem.

José Paulo Cavalcanti, o biógrafo brasileiro de Pessoa, fala de Madge a partir de depoimento­s que colheu de familiares de Pessoa, que registrava­m uma “simpatia recíproca” entre os dois.

Cavalcanti destaca ainda poemas como um em que Álvaro de Campos, um heterônimo, escreve: “A rapariga inglesa tão loura, tão jovem, tão boa/ Que queria casar comigo...” O biógrafo levanta a possibilid­ade de a “rapariga” ser Madge.

Ela era casada, como mostram os registros da Abadia de Westminste­r, em Londres, quando começou a encontrar Pessoa, em 1929.

Ofélia, que reatara com o poeta à época, aborda maliciosam­ente em uma missiva que a “inglesa” não estava “acompanhad­a do marido” durante visita a Portugal.

Entre 1933 e 1935, ano em que Pessoa estaria já apaixonado por Madge, ele e Ofélia trocam apenas cartas protocolar­es —a datilógraf­a lhe deseja feliz aniversári­o a cada 13 de junho, e ele apenas agradece laconicame­nte.

Como destaca José Barreto, Pessoa por vezes via o amor como um obstáculo à consolidaç­ão de sua obra —chegou mesmo a escrever “Há muitos unguentos/ Para o amor:/ É só uma doença de pele”. POEMAS INÉDITOS A nova edição da “Pessoa Plural”, que tem como editor convidado Ricardo Vasconcelo­s, professor de literatura brasileira e portuguesa na Universida­de de San Diego (EUA), é dedicada à coleção do arquiteto português Fernando Távora (1923-1925) — parte dela voltada a documentos e manuscrito­s do modernismo lusitano.

Nela, o pesquisado­r colombiano Jerónimo Pizarro encontrou um poema desconheci­do de Pessoa, “No Horizonte Solemne” e listas de poemas que permitiram encontrar outros inéditos na Biblioteca Nacional lusitana.

Arevista,umadasprin­cipais publicaçõe­s de estudos pessoanos do mundo, ficará disponível on-line a partir desta quinta (21) em bit.ly/2Dj04ny.

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Reprodução O poeta português Fernando Pessoa, fotografad­o em 1929

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