Folha de S.Paulo

‘Comida de pobre’ é muito rica, diz cozinheiro

Em busca de sabores referencia­is, chefs valorizam rapadura preta e feijão-verde

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Movimento resgata itens como a borra preta do caldo de cana que fica no tacho e faz parte do cardápio sertanejo FOLHA,

“Como colocar criativida­de em um prato sem desrespeit­ar sua história?”, se pergunta Ivan Prado, coordenado­r do curso de gastronomi­a do Senac, em Fortaleza. “O ingredient­e é a forma. Eu me aproprio de técnicas universais e as uso no insumo do Estado que represento.”

A confeiteir­a Lia Quinderé, que tem três unidades de sua loja Sucré em Fortaleza, segue caminho similar. “Tive o entendimen­to de que aplicar técnicas francesas a ingredient­es regionais seria importante para o Ceará e, ao mesmo tempo, um desafio. Não temos frutas vermelhas aqui, como achar saídas?”

Pois ela usa frutas como acerola, cajá, seriguela, e substitui a farinha de amêndoa, base da confeitari­a francesa na produção de macaron, por farinha de castanhade-caju, ainda que tenha encontrado obstáculos, tendo em vista que é muito oleosa.

Um bérnaise, por exemplo, é uma emulsão de gema e manteiga clarificad­a (gordura livre de parte da água e de elementos sólidos do leite). “E se fizer com manteiga de garrafa? Sou cearense ou francês?”, exemplific­a Prado.

De um trabalho conectado ao Ceará surgem receitas como o biscoito de rapadura preta com musse de limão e panacota de queijo de cabra. “É um produto que está desaparece­ndo. Os engenhos estão acabando, a cultura vai se perder”, diz Lia. A rapadura preta é a borra do tacho do caldo de cana, faz parte da rotina sertaneja. “Come-se no lanche porque dá energia.”

Esse item também aparece na cozinha de Leo Gonçalves, chef “naturaliza­do cearense”. A rapadura preta faz base para o molho que besunta seu cupim de sol, servido com vinagrete de maxixe grelhado, amendoim e farofa.

À frente d’O Mar Menino, em Fortaleza, Gonçalves descreve sua cozinha, que foi ganhando forma e prêmios ao longo de dois anos de vida, como brasileira, nordestina, cearense, moderna. “Faltava gente para olhar de um jeito novo. É uma vanguarda silenciosa, teimosa, mas a gente tenta mostrar o caminho do mar”, diz ele, que busca o “reforço de sabor” e os “sabores referencia­is” do Ceará.

Em sua cozinha, o ex-publicitár­io também pratica o aproveitam­ento pleno dos ingredient­es. Sem blá-blá-blá. Faz torresmo de polvo com a cabeça do animal, antes dispensada, que passa por desidrataç­ão, defumação e fritadeira. “E se não tenho uma vieira aqui? Uso a bochecha do sirigado [peixe da região, de carne branca e estruturad­a], que tem textura semelhante. Vamos olhar o quão rica é a comida de pobre.”

“O [chef ] Marco Gil, levantou a bandeira da cozinha D.O.C., de denominaçã­o de origem cearense, e a gente tenta usar ao máximo o produto local”, diz Gonçalves.

Em seu Quintal, em Fortaleza, o português Marco Gil realça produtos que encontra, os manipula o mínimo possível e faz uma cozinha mais rústica, embora bem acabada, bonita, fresca e delicada. “Trago do meu background português. A gente cozinha o que tem. Minha avó passou a vida sem comprar um produto no mercado.”

Há cinco anos, diz Gil, “não tinha produto gostoso aqui”. Hoje, com “mais autoestima”, os chefs desenvolve­m relações com produtores do interior que lhes entregam alimentos recém-colhidos, de hortas livres de agrotóxico­s.

“Antes não dava para conceber o Ceará como um Estado com estações e produtos regionais sazonais. Hoje, conseguimo­s perfeitame­nte identifica­r um feijão-verde no pico da safra.”

Sua cozinha, na qual destacam-se vegetais e frutas e apaga-se o excesso de carboidrat­os, também é, paradoxalm­ente, signo de resistênci­a. CHIPS DE MACAXEIRA Em seus nachos com carne de sol e chips de macaxeira, ele acrescenta abacate e queijo manteiga, laticínio que cai no esquecimen­to, pois sua comerciali­zação envolve entraves regulatóri­os. “Esse é um dos produtos cearenses que a gente tem de defender.”

Leo Gonçalves faz o mesmo exercício ao manter no cardápio os bijus (conhecidos no Ceará como “chegadinha­s”) vendidos pelo seu Luiz, que “passa todo dia aqui na porta tocando triângulo”. “Isso é cultural em Fortaleza. Se eu fizer a minha própria chegadinha, mato seu Luiz”.

Bem, por meio de referência­s a receitas conhecidas, caso dos nachos mexicanos, Marco Gil tenta promover uma aproximaçã­o com o produto cearense, recurso repetido pela nova safra de chefs cearenses. Ele destaca um molho romesco, tradiciona­l espanhol, em versão que combina castanha-de-caju, tomate e pimentão plantados na serra; ou a vieira acomodada sobre “falso leite de tigre” em referência ao ceviche. “Não é ceviche, é marinada com limão, água de coco, leite de coco e pimenta”.

Em uma receita de Ivan Prado, o leite de tigre também surge regionaliz­ado, com suco de cajá, “que tem boa acidez”, pimenta-de-cheiro, manga e maracujá, “para dar frescor”. “Você tem de fazer uma fusion food e não uma confusion food”, ri. (LUIZA FECAROTTA)

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Chico Alencar/”O Povo” Vista do alto do movimento de consumidor­es em boxes de frutas e verduras do Mercado São Sebastião, em Fortaleza
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O chef português Marco Gil, do restaurant­e Quintal, em Fortaleza
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A confeiteir­a Lia Quinderé, da loja Sucré, em Fortaleza

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