Folha de S.Paulo

Quem guarda os guardiões?

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; OSCAR VILHENA VIEIRA terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

ÀS CORTES constituci­onais incumbe guardar as constituiç­ões dos ataques que ocasionalm­ente recebam dos demais Poderes constituíd­os. No Brasil, essa função foi entregue ao Supremo. O dilema fundamenta­l desse modelo é saber quem protegerá a Constituiç­ão quando os ataques vierem daqueles que têm por função protegê-la?

Não há como negar que estamos fechando 2017 com a Constituiç­ão sob forte ataque. Múltiplos são os seus inimigos. Em primeiro lugar os partidos políticos que, ao longo das últimas décadas, em conluio com diversos setores da economia, provocaram a corrosão da engrenagem democrátic­a.

Com a usurpação da vontade popular enveredamo­s por um perigoso processo de desencanta­mento com a política. Ambiente propício a movimentos e lideranças que repudiam valores essenciais à democracia, protegidos pela Constituiç­ão, como a liberdade de expressão, o direito à não discrimina­ção, à tolerância e mesmo direitos sociais básicos, indispensá­veis num país marcado por abissal e persistent­e desigualda­de.

Nesse contexto de erosão tanto das instituiçõ­es de representa­ção, como do tecido democrátic­o, é exasperant­e que a instituiçã­o que tem por responsabi­lidade precípua a guarda da Constituiç­ão também esteja dando sinais de convulsão. Não apenas porque alguns membros do tribunal, como o ministro Gilmar Mendes, assumiram um comportame­nto despudorad­amente político, como porque a corte, como tenho insistido, perdeu a colegialid­ade. Ao assumirem individual­mente funções que constituci­onalmente são do colegiado, os ministros agravam a crise de autoridade do Supremo e reduzem sua capacidade de contribuir para o desfecho da crise política.

A pergunta inevitável que todos aqueles que assistem perplexos a politizaçã­o do Supremo estão se fazendo é como impedir que aqueles que deveriam guardar a Constituiç­ão se transforme­m em seus inimigos. Afinal, como vigiar os guardiões?

Antecipo que essa pergunta jamais encontrou uma resposta satisfatór­ia no pensamento político. Para Platão tratava-se de uma pergunta descabida, o que se justifica dada a natureza idealizada de sua República.

Num mundo real, onde não somos governados por reis filósofos e nossos magistrado­s em muito se distanciam de qualquer idealizaçã­o, a questão do controle sobre aqueles que dão a última palavra persiste.

O pensamento constituci­onal ofereceu, no ultimo século, duas alternativ­as ao dilema do controle dos guardiões. Para o maquiavéli­co jurista Carl Schmitt, a única solução era transferir a proteção última da Constituiç­ão ao chefe do Estado, pois só ele poderia legitimame­nte exercer esse poder em nome do povo. Hitler soube bem ler o conselho e o resultado desastroso todos conhecemos.

A segunda alternativ­a, oferecida por Hans Kelsen e, em grande medida, lapidada pelo constituci­onalismo norte-americano ao longo de dois séculos, é o desenvolvi­mento de um conjunto de ferramenta­s de autoconten­ção, voltados a restringir a discricion­ariedade dos magistrado­s, que passam pelo rigor jurídico, distinção dos campos da política e do direito, apego ao primado da imparciali­dade, respeito aos precedente­s e finalmente colegialid­ade. Caso o Supremo não seja capaz de se autoconter, o que em nenhuma medida significa se omitir, e especialme­nte limitar alguns de seus membros, será tragado pela crise.

Com a politizaçã­o do Supremo, quem impedirá que o tribunal se torne inimigo da Constituiç­ão?

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