De Safo, traduzidos por Guilherme Gontijo Flores, e
“Metamorfoses” [912 págs., R$ 110], o mesmo drama de quem procura decifrar um papiro esfarrapado.
Vieira quer dar ao leitor “um gosto do original” e, bom discípulo dos concretistas, colocar Safo (bem como os outros dez poetas que traduz) em diálogo com um cânone de poesia inventiva que lhe interessa, seja de qual época for. Flores está preocupado com certa “poética do fragmento” e da indeterminação, que deixa o sentido do texto radicalmente em aberto. A primeira versão oferece fluidez; a segunda, estranhamento.
Os dois prefácios abordam de passagem a questão do “eu” na poesia grega. No vocabulário antigo, mélica (ou lírica, como se diria mais tarde) era antes de mais nada a poesia feita para ser entoada com música. Mas quando Arquíloco, no século 7º a.C., dizia “Desejo te enfrentar como um sedento / que vê um copo d’água”, de quem era essa voz irreverente e desafiadora?
Esse é um dos tópicos mais debatidos nos estudos sobre poesia antiga. Por muito tempo, o “eu” dos poetas antigos foi equiparado ao “eu” dos modernos, que narrava experiências próprias e desnudava o coração. Os versos eram usados, inclusive, como matéria-prima para compor a biografia dos poetas.
No começo do século 20, houve uma reviravolta de interpretação, que privou os gregos de um senso de individualidade e até mesmo da percepção de seus corpos como uma unidade. Além disso, foi se tornando claro que aquilo que a tradição registrava sobre a vida dos autores não se podia comprovar.
Hoje, a maioria dos estudiosos conflui para a ideia de que tudo que importava era o contexto de apresentação do poemas. Poesia era performance —mais ou menos como num show de rock, em que tudo colabora para que músicos e plateia se identifiquem como uma tribo. Assim, quando o poeta diz “eu” em um festival religioso, um casamento ou um simpósio no palácio do rei, ele está muito próximo de dizer “nós”: manifesta os valores do grupo e tem os olhos postos num repertório comum.
Exemplo notável é o “Hino a Afrodite”, um dos poemas centrais de Safo. A crítica mais recente descobriu nele uma reinvenção do episódio da “Ilíada” em que o guerreiro Diomedes reza para Atena no campo de batalha. Safo transpõe a linguagem da guerra para o universo do amor. Isso —e não falar em nome próprio— representa a novidade. definição de Propércio, a elegia erótica é uma “obra enganadora”. Nas palavras do historiador francês Paul Veyne, é o resultado invariável de um fingimento. A situação é sempre a mesma: o poeta é vítima do maior dos infortúnios, que é cair apaixonado. O ser amado é volúvel, faz do poeta gato e sapato, e o affair é uma sucessão de sofrimentos, pontuado por breves momentos de alívio e conquista.
Na elegia erótica, como explica Veyne, o poeta é um “mole”: alguém que abandonou os deveres de um cidadão romano como magistrado ou guerreiro para viver na doença do amor. Por isso a elegia era levemente escandalosa, mas nunca chegava a romper com o código dos bons costumes.
Assim, as amantes perversas eram escravas libertas ou cortesãs, jamais matronas casadas. E quando o amante era um jovem como Márato, a quem Tibulo dedica um ciclo de poemas, a regra do amor entre homens na antiga Roma jamais era rompida.
Os editores de “Por que Calar Nossos Amores?” destacam os casos de ternura, beijinhos e carinhos sem ter fim que pontuam as elegias de temática homossexual como se fossem exemplos de uma forma de afeição atemporal. Mas o fato —e os editores sabem disso— é que essa ideia é alheia aos romanos. Para um cidadão romano, ser penetrado era uma forma de rebaixamento, de perder o poder sobre si e virar escravo. Nem mesmo os “moles” elegíacos ousavam isso. A homossexualidade não existia em Roma.
De todos os lançamentos de poesia antiga, a nova edição da obra-prima de Ovídio, com tradução do português Domingos Lucas Dias, talvez seja a mais importante, uma vez que as únicas traduções anteriores em versos datavam do século 19: uma parcial, de Bocage, outra completa, de José Feliciano de Castilho.
Como disse Paul Veyne, apesar de sua graça e de sua teatralidade, a poesia erótica dos romanos tem certa falta de intensidade que às vezes nos entedia. Isso não acontece nas “Metamorfoses”.
A ambição de Ovídio, anunciada nas primeiras linhas, era escrever “um canto contínuo” sobre as transformações dos corpos desde a origem dos tempos. Para isso, ele tira o máximo proveito do latim, uma língua em que a ordem das palavras não é predeterminada pela sintaxe e na qual as sentenças podem facilmente se desdobrar ad infinitum, em direções imprevisíveis.
Mas essa lógica se estende também ao conjunto da obra: passa-se de um episódio a outro por meio de um processo engenhoso e às vezes imperceptível de montagem. Nas “Metamorfoses”, tema e forma se unem de maneira sui generis.
Da Grécia arcaica de Arquíloco e Safo até a Roma de Virgílio e Ovídio: de repente, tornou-se possível passear em português por oito séculos de poesia. Mas por que ler os clássicos? Das 13 respostas que Italo Calvino deu a essa pergunta em seu famoso ensaio, talvez sejam as duas últimas que melhor se aplicam aos livros da Antiguidade.
Lidos em confronto com o momento atual, uma hora ele servem de ruído de fundo, e outra, como algo que transforma o noticiário em “um rumor do lado de fora da janela”. Os clássicos são uma baliza. Ou um escape.