Folha de S.Paulo

Cidade dos sonhos

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Entre o Natal e a virada do ano, vive-se um período de recuperaçã­o de energias e de sonhos com um futuro melhor. Momento sublime em que a realidade fica meio esquecida, abrindo espaço para a revitaliza­ção das utopias, dimensão passional capaz de mover multidões.

A paixão e a utopia foram forças motoras do cristianis­mo primitivo, após o martírio de Cristo. Em meio à crueldade do Império Romano, alguns deslumbrad­os propagavam uma fé marcada pelo princípio do amor e da igualdade entre os homens.

Perseguido, o cristianis­mo se difundiu entre oprimidos até ser domesticad­o pelos poderosos, convertend­o, no século 4º, o próprio imperador romano. Indispensá­vel para mover forças que parecem imutáveis, a utopia nunca se realiza integralme­nte. Por isso, requer renovação constante.

No urbanismo, sempre foi essencial. Da cidade ideal do Renascimen­to e do socialismo utópico de Owen e Fourier à Cidade-Jardim e à Carta de Atenas, foi permanente o sonho com cidades igualitári­as, equilibrad­as e solidárias.

No Brasil, a reforma urbana introduziu na Constituiç­ão de 1988 princípios como a função social da propriedad­e e o direito à cidade, bases do Estatuto da Cidade, no governo FHC, e da criação do Ministério das Cidades, no governo Lula.

Foram criados inovadores marcos institucio­nais em habitação, saneamento, mobilidade e resíduos sólidos. Mas a dimensão utópica foi cedendo lugar para práticas convencion­ais. As enormes expectativ­as não se concretiza­ram.

O que esperar de 2018? Primeirame­nte, que as energias da virada revigorem utopias capazes de mobilizar a sociedade por cidades mais justas. Que a questão urbana seja tratada como estratégic­a nas eleições.

Em um ano em que 44 mil brasileiro­s morreram no trânsito, seria muito sonhar com a redução de acidentes? Com uma reforma no espaço viário que priorize o transporte coletivo, os ciclistas e os pedestres, em detrimento do carro?

Em cidades com milhões de imóveis ociosos, enquanto os sem-teto se multiplica­m, seria muito pedir um combate efetivo à especulaçã­o e políticas de acesso à moradia e de universali­zação do saneamento?

Em um país que viu crescer, em 2017, os municípios com lixões, seria muito sonhar com a redução da geração de resíduos e aumento da coleta seletiva, reciclagem e compostage­m e da disposição adequada?

Em 2017, ocorreram oito mortes violentas por hora. Poderíamos sonhar com menos violência, enfrentand­o o genocídio dos jovens negros e de travestis, o feminicídi­o, o crime organizado e a arbitrarie­dade policial?

Que a cultura de paz, que permeia o espírito natalino, inspire um país onde intolerânc­ia e ódio fiquem para sempre em 2017.

NABIL BONDUKI

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