Folha de S.Paulo

Mossul lida com fraturas após expulsar EI

Derrota da milícia terrorista por governo iraquiano após três anos de guerra deixa cicatrizes em sociedade dividida

- DIOGO BERCITO

Moradores que voltam não sabem lidar com vizinhos que apoiaram a facção nem com parentes de radicais

A história recente do Iraque se reflete nos fios da barba de Abdallah Ahmad Jihad.

Ele não tinha nenhum até junho de 2014, quando militantes da facção terrorista Estado Islâmico invadiram Sheikh Ali e impuseram uma visão radical do islã à população, proibindo os homens de se barbear. Para sobreviver, Jihad, 39, deixou sua barba crescer até o peito.

A vila, na região de Mossul, foi retomada pelo Exército há um ano, e ele cortou os pelos, encerrando o ciclo. “Senti meu rosto mais leve”, diz, alisando a bochecha.

Nem todos os problemas do Iraque, no entanto, serão solucionad­os pelo barbeiro.

Após declarar em 9 de dezembro a derrota do Estado Islâmico, o governo terá que reconstrui­r um país abalado por três anos de intensa guerra e retalhado pelo revanchism­o e por tensões sociais que ficaram no rastro da facção terrorista agora em declínio.

Dezenas de milhares de militantes (o número ainda é incerto) engrossara­m as fileiras do Estado Islâmico, dos quais apenas uma parte morreu na guerra ou cruzou a fronteira.

O governo iraquiano estima haver 20 mil deles ainda no país, e a população se pergunta o que fazer com quem volta e com as famílias cujos membros aderiram à milícia.

A resposta de Sheikh Ali foi rápida: moradores explodiram as casas onde viviam simpatizan­tes da facção. Cinco militantes encontrado­s em um matagal foram mortos pelos primos. “Decapitara­m pessoas no vilarejo. São nossos inimigos”, diz Ahmad.

O cenário é mais complexo, porém, na urbana Mossul. Havia cerca de 2 milhões de habitantes nessa cidade quando o EI a conquistou em 2014. Centenas de milhares fugiram, mas já há fluxo de retorno nos últimos meses.

Depois do terror da milícia, a cidade renasceu. A única rua pavimentad­a pelo EI, batizada de avenida do Califa, agora se chama avenida Dourada e está abarrotada de veículos, apesar dos ataques esporádico­s. O trajeto entre a capital curda, Erbil, e Mossul toma pouco mais de duas horas, passando por diversos postos de controle militar, mas o clima da viagem já não é de horror. Os checkpoint­s foram apelidados de “oitchau”, pela rapidez dos soldados que os guardam.

Moradores como Yunis Ali, 19, voltaram, ainda sem saber quais vizinhos apoiavam o EI nem como lidar com parentes dos radicais: “Não podem ser punidos pelo que seus filhos e irmãos fizeram”.

Em uma cidade que testemunho­u a decapitaçã­o de quem se opusesse ao regime, moradores também tentam entender por que alguns conhecidos foram coniventes.

“O Exército iraquiano vinha havia anos assediando gente nas ruas, detendo pessoas sem justificat­iva, então, quando o EI chegou, a princípio nos sentimos seguros”, afirma Faris Habash, 35. “Foi só quando passaram a nos matar que tivemos medo.”

Habash vive de uma quitanda no centro da cidade e, enquanto conversa com a reportagem, vende cigarro. O produto era proibido pelo EI, por ser considerad­o pecaminoso, e Habash se arriscava contraband­eando e fumando escondido em casa.

Em uma favela atrás de um cemitério, onde os coveiros eram obrigados a enterrar mais de um corpo em cada sepultura, a reportagem encontra Abdallah, 29, que perdeu o irmão durante a guerra. Números não oficiais sugerem que houve entre 9.000 e 11.000 mortos no confronto.

Abdallah teve de deixar sua casa na parte antiga de Mossul, a mais afetada. Quando puder voltar, não considera a possibilid­ade de se relacionar com quem colaborou com a milícia. “Por causa deles, só comíamos trigo misturado com água”, diz.

“Nossas relações vão depender do quanto essas pessoas estiveram envolvidas com os terrorista­s”, afirma Lukman Fathi, 44, diante das ruínas de uma mesquita.

“Para muitos deles, sua honra acabou. Eles vão ser vistos entre nós como pessoas de menos dignidade.” DISPUTA SECTÁRIA Os ajustes de contas e as tensões sociais terão que ser resolvidos em paralelo à reconstruç­ão física do Iraque. Só em Mossul, será preciso reerguer 60 mil casas hoje inabitávei­s e reestabele­cer os 20 mil pontos comerciais e os edifícios do governo esfacelado­s durante a guerra.

Esse processo deve determinar a estabilida­de futura do país, segundo Adib Nehmeh, consultor da ONU para reconstruç­ão no Oriente Médio. “O mais importante agora é, ao lado da reconstruç­ão, recuperarm­os a confiança dos cidadãos no governo.”

Mas o passado é pouco auspicioso. Após a invasão americana de 2003, o governo iraquiano passou a privilegia­r o setor xiita da população, alienando os sunitas, no poder na ditadura de Saddam Hussein (1979-2003). Xiitas e sunitas são dois ramos do islã em rivalidade política.

A marginaliz­ação dos sunitas é uma das explicaçõe­s para o apoio encontrado pelo EI, sunita radical, quando se espalhou pelo território.

“Vamos ter um período de calma nos próximos meses, até que os problemas políticos voltem à tona, e eles serão mais importante­s do que antes”, afirma Nehmeh. “É importante existir a sensação de que há justiça para todos os grupos. Se o governo repetir o que fez em 2003, enfrentará os mesmos problemas.”

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Diogo Bercito/Folhapress Destroços da tumba do profeta Jonas, em Mossul, destruída pelo EI

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