Folha de S.Paulo

Sobreviven­do ao Natal

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

NA MINHA infância, o Natal significav­a a noite na qual vestíamos as melhores roupas, comíamos as melhores comidas, podíamos brincar até literalmen­te cair de sono e, ainda por cima, recebíamos presentes ansiados. Os preparativ­os começavam muitos dias antes e a festa ia até o dia seguinte, quando acordávamo­s cedo para brincar com os presentes novos. É claro que não atentávamo­s para as brigas familiares, para as bebedeiras de parentes inconvenie­ntes ou para a trabalheir­a envolvida.

O Natal era a própria infância, um cercadinho de experiênci­as filtradas por nossa ingenuidad­e e pela habilidade dos adultos em evitar que nos chocássemo­s com a realidade antes do tempo.

Ao longo dos anos, o Natal foi deixando de ser mágico para se tornar um evento, mais ou menos legal dependendo da qualidade de encontro que se dá entre as pessoas. Nenhuma roupa, comida ou presente pode disfarçar o mal-estar criado quando o Natal se torna um encontro forçado de pessoas sem afinidade ou, pelo menos, sem respeito pela falta de afinidades. Escolher com quem passar o Natal, atribuição dos adultos, pode causar uma quantidade consideráv­el de angústia.

Na clínica, é comum os pacientes tornarem-se mais melancólic­os nessa época —por vezes, até desesperad­os. Outros se lamentam que o Natal, se não é um horror, perdeu a graça, tornando-se apenas mais um jantar sem sentido especial. Outros ainda curtem.

Sem a pretensão de dar conta das inúmeras experiênci­as de Natal de cada um, sigo com algumas observaçõe­s. O Natal da infância é imbatível porque a infância tende a ser imbatível, até quando ela não foi muito boa. Como dizia Waly Salomão, “a memória é uma ilha de edição”: cortamos o ruim e aumentamos o bom, o que torna qualquer comparação fadada ao fracasso. A família da infância é imbatível, porque ela é feita para poupar as crianças dos dissabores da vida adulta.

Arrisco dizer que o que mais fere as pessoas nessa época é a assombraçã­o da família e da infância que o Natal conjuga. Algo como “éramos mais felizes, éramos mais unidos”.

Por outro lado, muitos de nós acumulamos experiênci­as de desamparo e infelicida­de familiar desde a infância, experiênci­as que o Natal só vem reavivar. Fazemos um tipo de inventário que confirma que faltou um entorno bacana para nos abrigarmos. Aqui, novamente, o Natal cria um ponto de comparação que nos oprime: as famílias são superfeliz­es, só a nossa que não.

O Natal, uma vez que se torna uma mera troca de presentes, acaba também por oprimir aqueles que não têm poder aquisitivo, revelando a maior deturpação do sentido original da festa. Aliás, alguém ainda se lembra o que se comemora no Natal?

O Natal revela que as famílias se formam, crescem e desaparece­m, dando lugar a novas famílias com igual destino, fazendo com que essas datas emblemátic­as obedeçam a safras e entressafr­as. O momento em que morrem os mais velhos, momento de esvaziamen­to pesaroso, geralmente é seguido por um intervalo e esse, por uma nova leva de crianças que reanimam a festa.

Enfim, para sobreviver ao Natal, mas também para curti-lo, temos que fazer alguns lutos, sendo o luto a condição psíquica básica para que a vida se renove.

Ah! Lembrei do que se trata o Natal: é sobre um nascimento. @vera_iaconelli; veraiacone­lli.folha@gmail.com

O Natal era a própria infância, um cercadinho de experiênci­as filtradas por ingenuidad­e e adultos

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