Folha de S.Paulo

Desde o começo do ano, o psicólogo passou a se dedicar

- THAIZA PAULUZE

Em março de 2018 completará dez anos que Emerson Ferreira foi preso. Cinco anos passados no cárcere, cinco anos vividos na universida­de. Para os próximos cinco, a ideia do agora psicólogo é difundir o recém-criado projeto Reflexões da Liberdade e contar sua história para convencer outros jovens a não seguirem o caminho do crime.

“Quem daqui os pais concluíram a universida­de?”, pergunta Emerson a uma sala de aula com 60 alunos numa escola pública de Embu (Grande São Paulo), onde cresceu. Só três levantam a mão. “Quem daqui os pais concluíram o ensino médio?” Seis alunos se manifestam. “Quem daqui conhece alguém que já foi preso?” A resposta é quase unânime.

Emerson, aos 29 anos, fala com propriedad­e. Sua infância também foi marcada pela violência. “Vi gente morrendo no beco da rua em cima da minha, na frente da minha casa, na porta da igreja.”

A saída que encontrou na época, no entanto, hoje ele tenta desestimul­ar. “Minha conversa com esses jovens é para falar sobre os valores que faltaram e que me levaram ao crime.”

Condenado por tráfico de drogas e associação criminosa em 2008, Emerson conheceu “O Vendedor de Sonhos”, “A Cabana”, “O Corpo Fala” e todo o catálogo de psicologia da biblioteca da penitenciá­ria Desembarga­dor Adriano Marrey, em Guarulhos (Grande SP) —leituras que mudaram o rumo da sua história.

“Tudo que era educaciona­l eu estava envolvido.” Tudo significav­a um curso para 20 pessoas, numa unidade com 2.600 presos. À noite, dividia cela com 45 homens, num espaço para, no máximo, 11.

Como era dos poucos que sabia ler e escrever, acabou encarregad­o de endereçar cartas para a família dos outros detentos. E virou educador da unidade por quase dois anos.

Em 2011, conheceu o GDucc (Grupo de Diálogo Universida­de-Cárcere-Comunidade), projeto da Faculdade de Direito da USP, com encontros semanais entre presos e universitá­rios para debater a questão carcerária.

“Tem alguém que já saiu da prisão e faz parte do GDucc como universitá­rio?”, perguntou Emerson ao professor de direito penal Alvino Augusto de Sá em um dos encontros. A resposta foi não. “Pode escrever que eu vou ser o primeiro”, disse.

Depois de cumprir quatro anos e meio de pena, fez outra promessa, desta vez ao pai: seria o primeiro da família a conseguir um diploma de graduação. Tinha em mente o objetivo de usar a educação para mudar a própria vida e a das pessoas com pouco acesso ao ensino. LIBERDADE Contrariou o fluxo das carceragen­s brasileira­s, de 80% de reincidênc­ia no crime, e se matriculou numa faculdade privada de Guarulhos.

Nos primeiros semestres, encarava uma rotina exaustiva em dois empregos para pagar as mensalidad­es. “Às vezes saía do buffet de madrugada, viajava 55 km pra casa, tomava uma ducha e voltava para a faculdade”, conta.

Depois de um ano, começou a estagiar como psicólogo. Cumpriu a primeira promessa e voltou ao GDucc, desta vez como estudante e coordenado­r do grupo.

Trabalhou no AfroReggae, ajudando ex-detentos a arrumarem emprego. E na Associação Horizontes, onde ministrou mais de 70 cursos em sete unidades da Fundação Casa, de jovens infratores.

A outra promessa foi concluída em agosto. As cem páginas do seu trabalho de conclusão da universida­de falaram sobre justiça restaurati­va e aprendizag­em emocional no sistema prisional. Obteve nota máxima. “Hoje a gente criminaliz­a a pobreza, faz uma higienizaç­ão”, explica Emerson, que agora pensa no mestrado. REFLEXO integralme­nte ao desenvolvi­mento do Reflexões da Liberdade. O foco inicial é entrar nas 71 escolas de Embu, que engloba também os colégios do município vizinho Taboão da Serra. Já visitou 12, mobilizand­o cerca de 3.500 alunos. Para cada uma, Emerson pensa numa estratégia alinhada com as necessidad­es do local e dos alunos.

“Hoje tento fazer com que os jovens de onde eu moro não sigam o que eu vivi e consigam enxergar outras possibilid­ades além do ciclo vicioso daquele lugar”, diz.

“As pessoas não acordam e pensam: ‘Vou cometer um crime e ir para a cadeia’. Fui preso porque não tive uma boa educação.”

Além das salas de aula, celas também fazem parte do escopo. Na penitenciá­ria de Franco da Rocha (Grande São Paulo), Emerson deu uma palestra piloto para mostrar seu projeto à direção.

A estagiária de psicologia da unidade, Haryanne Loyola Lopes, o procurou dois meses depois. “Os meninos sempre nos contam do desejo que eles têm de ser ‘como o Emerson’”, diz ela. “Quando um sai em liberdade, diz: ‘Agora eu vou estudar como o Emerson fez’. Já ouvi isso diversas vezes”, conta.

Para o psicólogo, educação com liberdade pode driblar as chagas das desigualda­des sociais. “Percebi que a minha negligênci­a com a escola, a falta de interesse, não era minha culpa, mas sim da educação que não conversa com os jovens. O mundo mudou, a tecnologia mudou, mas as salas de aula não mudaram.” CORAGEM “Por que eu não coloquei toda a minha coragem, ousadia, disposição e desejo de vencer na vida a serviço de outra coisa? Porque não tinha outra coisa. Me desenvolvi com o que tinha, que era a criminalid­ade”, conta Emerson.

Há dez anos, ele diz que não acreditava que viveria até os 30, idade que completa em junho. “Agora quero viver pelo menos mais uns 50”, brinca, enquanto planeja o futuro. “Eu quero que o mundo seja mais igual e tenho certeza de que posso contribuir. Por que esperar se a gente mesmo pode ajudar a desenvolve­r uma cultura de paz?”

Desde 2015, Emerson é parte do Global Shapers, iniciativa do Fórum Econômico Mundial que une jovens com espírito de liderança, que geram impacto positivo em suas comunidade­s. Em 2016, foi reconhecid­o como Liderança Jovem do Estado de São Paulo.

Agora, além de remontar as peças do passado, luta para formalizar juridicame­nte o Reflexões da Liberdade e conseguir financiame­nto para expandir o projeto.

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