Folha de S.Paulo

Teoria importada ampara condenaçõe­s na Lava Jato

Doutrina da ‘cegueira deliberada’ foi usada em 13 casos por Moro e Bretas

- RICARDO BALTHAZAR

Juízes adotam tese ao não verem prova de que condenados soubessem de corrupção, mas havia razão para suspeitare­m

Juízes que conduzem os processos da Operação Lava Jato vêm usando com frequência uma doutrina jurídica estrangeir­a para fundamenta­r condenaçõe­s pelo crime de lavagem de dinheiro nos casos em que as provas apresentad­as contra os acusados parecem mais frágeis.

Conhecida como teoria da cegueira deliberada e formulada pela primeira vez na Inglaterra no século 19, essa doutrina permite tratar como culpada uma pessoa que tenha movimentad­o dinheiro sujo sem ter conhecimen­to da natureza ilícita dos recursos, punindo-a com o mesmo rigor aplicado a quem comete esse crime consciente­mente.

Desde o início da Lava Jato, há três anos, o juiz Sergio Moro, responsáve­l pelos processos que estão em Curitiba, e seu colega Marcelo Bretas, que atua no Rio, condenaram 121 pessoas por lavagem de dinheiro. Eles recorreram à doutrina importada em 13 casos até agora, conforme levantamen­to feito pela Folha.

Ao julgar essas ações, os juízes reconhecer­am que não havia provas de que os réus soubessem da ligação entre o dinheiro movimentad­o e a corrupção, mas os condenaram mesmo assim, argumentan­do que tinham motivo para suspeitar do que estavam fazendo e tinham consciênci­a do risco de cometer crimes.

A legislação brasileira pune a lavagem de dinheiro quando o acusado sabe que o dinheiro é sujo e age com intenção de escondê-lo. Mas muitas situações não são claras assim, como no caso de alguém que aceita transporta­r uma mala de dinheiro roubado sem saber o conteúdo.

Nesses casos, a lei prevê punição quando se demonstra que o acusado tinha consciênci­a do risco que corria, mesmo sem intenção de praticar um crime. Mas isso também é difícil de provar muitas vezes, e por essa razão os juízes têm recorrido à doutrina da cegueira deliberada.

Em 2015, o empresário Adir Assad e outras duas pessoas foram condenadas por repassar R$ 18 milhões destinados por uma empreiteir­a a funcionári­os corruptos na Petrobras. Não havia provas de que soubessem dos acertos feitos pela empresa na estatal, mas Moro os puniu mesmo assim.

“Ao concordare­m em realizar as transações sub-reptícias, em circunstân­cias suspeitas, sem indagar a origem, natureza e destino dos valores, com empreiteir­as com contratos milionário­s com o poder público, assumiram o risco de produzir o resultado delitivo”, disse na sentença. PERGUNTAS De acordo com essa visão, uma pessoa que evita fazer perguntas que poderiam confirmar suas suspeitas deve ser punida da mesma forma que alguém com completa consciênci­a da ilicitude de sua conduta, ou dos riscos assumidos.

O ex-marqueteir­o petista João Santana e sua mulher, Empresário Ex-assessor do PP Ex-marqueteir­o do PT Filha do ex-presidente da Eletronucl­ear Othon Luiz Pinheiro da Silva Empresário Emprestou sua conta bancária para que o ex-deputado Pedro Corrêa (PP-PE) recebesse R$ 390 mil em propina de fornecedor­es da Petrobras Recebeu de um representa­nte do grupo Keppel, fornecedor da Petrobras, US$ 4,5 milhões em uma conta secreta mantida com a mulher na Suíça Mônica Moura, foram condenados com argumento parecido em fevereiro, num caso em que admitiram ter recebido US$ 4,5 milhões de um fornecedor da Petrobras na Suíça, mas disseram ignorar a origem ilícita dos recursos.

“A postura de não querer saber e a de não querer perguntar caracteriz­am ignorância deliberada e revelam a representa­ção da elevada probabilid­ade de que os valores tinham origem criminosa e a vontade de realizar a conduta de ocultação e dissimulaç­ão a despeito disso”, disse Moro.

Assad e Santana mudaram suas estratégia­s de defesa após as primeiras condenaçõe­s e passaram a admitir seus crimes. Moro e Bretas voltaram a condená-los por lavagem em outros processos, sem menção à teoria da cegueira.

Muitos advogados criticam o uso da doutrina por considerá-la incompatív­el com o Vernon afirmou que usava a conta para pagar despesas pessoais do deputado e não sabia que o dinheiro tinha origem num esquema de corrupção Santana e a mulher admitiram o uso da conta para receber pagamentos do PT, mas disseram ignorar que a origem era a corrupção na Petrobras sistema jurídico brasileiro, ao punir condutas que não são claramente caracteriz­adas pela legislação como criminosas.

“Isso amplia o poder dos juízes de decidir arbitraria­mente e às vezes de forma casuísta, sem critérios muito claros”, diz o advogado Fabio Tofic Simantob, que defendeu Santana e outros réus na Lava Jato. DESEQUILÍB­RIO Em suas sentenças, Moro tem citado a seu favor opiniões de integrante­s do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e de três ministros do Supremo Tribunal Federal que mencionara­m a doutrina no julgamento do mensalão, Celso de Mello, Luiz Fux e Rosa Weber —que era assessorad­a por Moro nessa época.

“A teoria da cegueira deliberada desequilib­ra a balança da Justiça em favor da acusação, porque estreita o caminho para a defesa”, diz o advogado Corrêa foi cassado no escândalo do mensalão e, segundo Moro, Vernon tinha motivo para desconfiar que a origem do dinheiro era ilícita Moro reconheceu que não há prova de que eles soubessem da corrupção, mas concluiu que sabiam dos riscos que estavam correndo 5 anos 8 anos e4 meses Spencer Toth Sydow, autor de um livro sobre a doutrina e contrário à maneira como tem sido adotada no país. “Com ela, o acusado não pode alegar ignorância, e o Estado não precisa buscar prova.”

Em pelo menos duas ocasiões, Moro absolveu pessoas acusadas de lavagem de dinheiro pelo Ministério Público argumentan­do que a teoria da cegueira deliberada não era aplicável em seus casos.

Ele fez isso ao julgar três funcionári­os da OAS envolvidos com as obras do apartament­o que a empreiteir­a diz ter reformado para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e executivos da Engevix que assinaram contratos com o doleiro Alberto Youssef.

Para o juiz, nesses casos os acusados estavam apenas cumprindo ordens superiores, e não havia provas de que soubessem da origem ilegal dos recursos que movimentar­am.

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