Folha de S.Paulo

Em busca da utopia do consenso

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA domingo: Clóvis Rossi, segunda: Jaime Spitzcovsk­y, quinta: Clóvis Rossi

ESSE NOTÁVEL sábio que foi José Mindlin (1914-2010) me disse, certa vez, que muitas pessoas pareciam pensar que “contra argumentos, não há fatos”, contrarian­do a sabedoria convencion­al.

Achava que era apenas uma boutade do velho sábio, irônica e perspicaz, mas boutade. Descobri numa “New Yorker” já meio antiga que é ciência.

Elizabeth Kolbert, colaborada habitual da revista, mergulhou em um punhado de estudos científico­s para apontar o que veio a se chamar de “viés de confirmaçã­o”. Rótulo que designa “a tendência que as pessoas têm para abraçar informação que respalda suas crenças e rejeitar informação que as contradize­m”.

Esse viés acaba interferin­do no que os cientistas cognitivos Hugo Mercier e Dan Sperber apontam como uma das maiores vantagens dos humanos sobre outras espécies, que é a habilidade para cooperar.

Como é possível cooperar se o mundo todo se transformo­u numa coleção de bolhas em que cada um busca apenas confirmar o que já pensa (seus argumentos) e rejeitar todos os fatos que os contradize­m?

O texto de Kolbert foi pensado especifica­mente para os Estados Unidos de Donald Trump, como é óbvio, mas vale, por exemplo, também para a conjuntura da Catalunha. Como é possível que os fatos que demonstrar­am o enorme prejuízo que seria a independên­cia não tenham impedido que metade do eleitorado continuass­e agarrada a ela?

No percurso, foi destruída a tal “habilidade para cooperar” que seria a grande qualidade dos humanos.

É natural, portanto, que o rei Felipe 6º tenha usado seu pronunciam­ento de Natal para pregar a necessidad­e de restabelec­er a convivênci­a na Catalunha.

Vale para a Espanha, vale para boa parte do mundo, vale para o Brasil.

NaArgentin­a,porexemplo,Joaquín Morales Solá (“La Nación”), um dos mais notáveis colunistas do país, defendeu nesta quarta-feira (27) que o governo convoque “um contrato de pacificaçã­o nacional”.

Morales Solá admite que “nunca um projeto assim incluirá a todos, mas, pelo menos, se saberá em que lugar está cada um”.

Na Espanha, outra colunista notável (Sandra León, “El País”) vai praticamen­te na mesma linha, ao pregar que os partidos políticos transitem “da lógica majoritári­a à [lógica] consensual”, admitindo ela também que “concessões são custosas devido à polarizaçã­o”.

Sandra está pensando no caso da Catalunha. Ou seja, gostaria que os partidos políticos saíssem da mera discussão em torno de como formar maioria, já que nenhum deles isoladamen­te teve votos suficiente­s para tanto, e procurasse­m romper o impasse em torno da independên­cia, apoiada pela metade dos catalães e rejeitada pela outra metade.

O Brasil está igualmente necessitad­o de um “contrato de pacificaçã­o nacional” e/ou de uma lógica de consenso, em vez de lógica de maioria (ninguém vai obter em 2018 maioria suficiente para governar sozinho).

Imagino que estejamos, os três, fazendo apenas “um brinde ao sol”, como dizem os espanhóis, para designar propostas que não serão implementa­das. Mas é sempre melhor do que aceitar as sombras da incomunica­bilidade.

Está mais do que na hora de abandonar as trincheira­s de cada tribo para tentar restabelec­er a convivênci­a

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