Folha de S.Paulo

Aos 70, Índia vê crescer risco nacionalis­ta

Sob governo de Modi, país multicultu­ral enfrenta aumento de ataques contra muçulmanos e outras minorias

- PATRÍCIA CAMPOS MELLO

Intelectua­is críticos ao premiê e são alvo de perseguiçã­o; para analistas, tolerância está diminuindo

No dia 28 de setembro de 2015, um grupo de hindus munidos de paus e tijolos invadiu a casa do muçulmano Muhammad Akhlaq, 50, em um vilarejo no norte da Índia. Akhlaq levou tijoladas até morrer, e seu filho Danish, 22, ficou gravemente ferido.

O crime dos Akhlaq: teriam comido carne de vaca, animal considerad­o sagrado pelo hinduísmo. (A polícia determinou depois que a carne que eles guardavam no freezer, e que seria a prova do “crime”, era de cordeiro).

Desde que o premiê Narendra Modi e o partido nacionalis­ta hindu BJP assumiram o poder na Índia, em maio de 2014, 60 pessoas foram alvo de linchament­o por supostamen­te terem comido carne de vaca ou vendido gado para abatedouro­s, segundo o site de dados IndiaSpend —20 vezes o total de linchament­os por causa de vacas registrado entre 2010 e 2014.

Dessas, 28 morreram. Quase todas eram muçulmanas.

Ao completar 70 anos de independên­cia do Reino Unido, a democracia indiana está sob ameaça.

Desde a onda de violência que se seguiu à grande divisão da Índia, que deu origem a um Estado hindu e um muçulmano, o Paquistão, gerações de líderes reconhecer­am que a tolerância e a secularida­de são essenciais para governar um país com tamanha diversidad­e religiosa, linguístic­a, étnica e cultural.

Com 1,3 bilhão de habitantes, a Índia deve superar a China em 2024 como país mais populoso do mundo. Hindus são a maioria, 80%, mas há 172 milhões de muçulmanos (14,2% da população), além de cristãos, sikhs, parsis, judeus e outras minorias.

O primeiro-ministro Modi abandonou a agenda para uma Índia inclusiva: propõe uma agenda de desenvolvi­mento econômico aliada a medidas que agradam aos nacionalis­tas hindus.

Modi se formou nas fileiras da Rashtriya Swayamseva­k Sangh (RSS, ou Sociedade Patriótica Nacional), que promove a ideia do Hindutva (Hindusidad­e) —basicament­e, a Índia para os hindus.

Os nacionalis­tas da RSS, e de seu braço político, o BJP, querem que o país recupere os anos de glória que precedem os colonizado­res britânicos e os invasores Mughal (muçulmanos). Apostam que a fórmula Hindutva mais desenvolvi­mento vai “fazer a Índia grandiosa de novo”. DISCURSO DÚBIO Mas quando se elegeu em 2014, Modi minimizou suas credenciai­s hindus e enfatizou a proposta de espalhar pelo país o chamado “milagre de Gujarat”, Estado com alta taxa de cresciment­o, que ele governou de 2001 a 2014.

“O nacionalis­mo hindu moldou a visão de mundo de Modi, mas ele usa a retórica do desenvolvi­mento para atrair a classe média da Índia, que não dá tanta importânci­a à política identitári­a”, disse à Folha Irfan Nooruddin, diretor da Iniciativa Índia da Universida­de Georgetown (Washington, EUA).

No entanto, duas medidas desastrada­s sabotaram os indicadore­s econômicos da gestão Modi, antes impression­antes. A decisão “anticorrup­ção” de tirar de circulação notas de 500 e 1.000 rúpias (cerca de 85% das notas em circulação) causou caos na economia. A implementa­ção atabalhoad­a do novo imposto sobre bens e serviços foi mais um golpe contra os pequenos empreended­ores.

Como consequênc­ia, o cresciment­o do PIB, que atingiu média de 7,5% entre 2014 e 2017, caiu para 5,7% no segundo trimestre de 2017, em um país que precisa crescer acima de 6% para absorver as 12 milhões de pessoas entram no mercado de trabalho a cada ano.

E os nacionalis­tas hindus, sob Modi, ficaram cada vez mais ambiciosos. O BJP está reescreven­do livros didáticos em vários Estados —propõe “desocident­alizar” os textos, mas também está extirpando minorias, em nome de um orgulho indiscrimi­nadamente o epíteto patriótico hindu. “antinacion­al” para perseguir

Em março de 2017, Modi indicou intelectua­is e jornalista­s o líder hindu Yogi Adityanath que criticam o nacionalis­mo para governar Uttar Pradesh, ou o BJP. Um dos alvos foi o ganhador Estado com a maior população do Nobel Amartya Sen. muçulmana da Índia. Outros têm destino trágico. Adityanath­jáafirmouq­ue,caso Em setembro deste ano, a um muçulmano mate um únicohindu,cemmuçulma­nosdevem jornalista Gauri Lankesh, que comparou o nacionalis­mo ser mortos em retaliação. hindu do RSS ao fascismo, foi

Nem o Taj Mahal escapou morta a tiros na frente de sua de sua fúria. O mausoléu casa, em Bangalore. construído pelo imperador “A democracia indiana enfrenta muçulmano Shah Jahan foi muitas ameaças, a maior omitido do catálogo de turismo delas é o cresciment­o do do Estado e teve seu orçamento autoritari­smo”, disse à Folha cortado. Sangeet Som, Sumit Ganguly, coordenado­r integrante do BJP, disse que de estudos sobre a civilizaçã­o o Taj Mahal era uma “mancha indiana na Universida­de de na cultura Indiana” construída Indiana em Bloomingto­n. por “traidores”. “O constante ataque contra a liberdade de expressão é alarmante.”

Não se pode culpar diretament­e ANTINACION­AL Modi ou a RSS por essa escalada de violência contra a minoria muçulmana e a oposição. Mas a retórica inflamada deles promove esse clima de intolerânc­ia, aponta Ganguly.

Mesmo assim, analistas apontam que é precoce decretar a morte da resiliente democracia indiana, onde o contraditó­rio sobrevive na imprensa e no judiciário.

Indianos brincam que democracia só atrapalha, basta ver a rapidez com que as reformas são implementa­das na ditadura chinesa. Neste caso, o caos democrátic­o indiano, com inúmeros partidos, níveis de governo, sociedade civil e imprensa, tem impedido que uma doutrina como o Hindutva prevaleça.

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Templo Akshardam - 2.nov.17/AFP Premiê indiano, Narendra Modi (à dir.), faz ritual hindu no Templo Akshardam com líder espiritual M. Swami Marahaj
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