Folha de S.Paulo

FOLHA VERÃO Moradores vivem sós em ‘mini-ilhas’ do litoral de SP

Em São Sebastião, ilha das Couves tem um casal, e a dos Gatos, um homem

- ANGELA PINHO

No alto de uma delas, sobrevivem ruínas de mansão; água potável vem de nascentes, e a comida, do mar

“Esta é a nossa televisão”, diz a psicologa Maria Miller, 56, sentada na varanda de casa. Aponta para o mar, rota de golfinhos. “Esse é o nosso [canal] Animal Planet.” Olha para o céu azul. “O Weather Channel”, diz. “Já o Discovery passa o dia inteiro.”

Ao seu redor, estão o marido, David Ferdinand, 53, o vira-lata Lao e Brad Pitt, um gato bege que ela batizou com esse nome ao se mudar para a ilha das Couves, em São Sebastião —“porque não dava para vir a uma ilha deserta sem trazer o Brad Pitt, né?”

A pouco mais de três quilômetro­s da costa de São Sebastião, saindo da Barra do Sahy, a ilha das Couves não tem nem sequer geladeira —quanto mais televisão. Mas, assim como a vizinha ilha dos Gatos, possui natureza preservada, sol, sombra e água fresca.

Dentro de cada uma delas, apenas uma casa, onde vivem moradores escolhidos para zelar pela natureza e afastar de ladrões à sujeira de turistas. ILHA DAS COUVES Na ilha das Couves, o papel cabe a Maria e David. Americano de Rhode Island, foi ele o responsáve­l pela mudança do casal. Durante uma conferênci­a de turismo nos anos 1990, ficou amigo de Manoel Gonçalves.

Seu Maneco, como é conhecido, comprou as terras da ilha há mais de 50 anos. Com a idade —tem mais de 90 anos—, ficou difícil ir para lá.

Consultou David sobre a possibilid­ade de ele virar uma espécie de guardião do local, e o americano concordou. Inicialmen­te, ele e Maria se dividiam entre a ilha e uma casa na praia de Boiçucanga. Com o tempo, David deixou o continente e, há dois anos, Maria seguiu seus passos.

Como a ilha não tem geladeira, e nem sempre o mar permite que eles saiam para buscar alimentos, tiveram que se adaptar. Fizeram um estoque de grãos e passaram a praticar escambo: barcos pesqueiros passam lá para pegar água da nascente e, em troca, deixam comida. “Às vezes, vem camarão, às vezes filezinhos”, conta Maria.

O acompanham­ento sai do próprio quintal, rico em frutas e verduras. “We don’t have couve, but we have taioba” (não temos couve, mas temos taioba), diz David, que fala poucas palavras em português, em referência à hortaliça que lembra a couve.

O menu conta ainda com broto de bambu. Mas, embora ajude a incrementa­r a refeição, a planta é um problema para o ecossistem­a local, afirma ele. Ao longo da última década, o bambuzal vem se espalhando pela ilha e tomando o lugar de outras espécies.

Para conter a invasão e ampliar o conhecimen­to sobre a área, ele procurou o Ivepesp (Instituto de Valorizaçã­o da Educação e da Pesquisa de SP). Assinado recentemen­te, um acordo de cooperação prevê projetos educaciona­is e de pesquisa no local.

David quer também tornar a ilha mais conhecida. Atualmente, ela recebe turistas que passam o dia ou acampam pela diária de R$ 50. O dinheiro ajuda no pagamento de uma taxa anual à União. Mas, mesmo com anúncio no Airbnb, a ilha homônima de Ubatuba ainda é mais famosa.

O casal tem ainda muitos outros planos. A lista inclui atividades culturais para caiçaras, um banco comunitári­o e até uma moeda própria para as ilhas do litoral.

Se o futuro permitirá que se concretize­m, é uma incógnita, mas Maria diz que eles não pensam nisso. “Encaramos nossa estada aqui só como um momento, ainda que um momento que torcemos muito para não acabar.” ILHA DOS GATOS A 5 km dali, o “momento” já dura 35 anos para Caio Rodrigues Rego, 65, morador há todo esse tempo da ilha dos Gatos e guardião de uma história ainda mais longeva.

Em frente às praias da Baleia, Camburi e Boiçucanga, a ilha tem uma pequena faixa de areia, construída artificial­mente com a explosão das rochas que ficavam ali.

O que sobrou das pedras foi usado pelo americano Julian Penrose (1916-1968), que passou parte da vida no Brasil, para erguer duas casas na ilha: a do caseiro, na parte baixa, onde vive Caio, e uma bem maior no topo.

Caiçaras dizem que a mansão teria sido visitada pelo presidente americano Nelson Rockfeller (1908-1979), mas não há registro de como ou quando isso teria ocorrido.

Em entrevista à “Revista USP”, o historiado­r Antonio Pedro Tota, autor de livro sobre Rockfeller, disse que a ilha chegou a ser arrendada por um primo do presidente.

Segundo os conhecedor­es da história local, porém, quem mais frequentou a ilha foi Penrose e a família. Após a morte dele, a casa foi abandonada.

Quando Caio chegou, mais de uma década depois, ainda havia livros, louças e outros objetos da antiga mansão. Com o tempo, tudo foi saqueado por visitantes e pescadores, conta. Caio ficou apenas com um conjunto de pregos de cobre, à prova de ferrugem. AS RUÍNAS Da mansão, restam só ruínas. Para chegar a ela, é preciso percorrer uma rota quase fechada pela mata. Galhos e troncos de árvores bloqueiam diversos trechos.

Nos primeiros dez minutos de trilha, parece improvável encontrar qualquer construção. Até que surgem dois blocos de pedras, marcas do antigo quintal. Mais alguns passos à frente, o que restou da casa: duas grossas paredes de pedra, uma de frente para a outra, com espaço para estante e lareiras. Um palmo de terra encobre o piso original.

Na parte externa da parede,

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há a figura de um leão em alto relevo, também em pedra. Caio lembra que, originalme­nte, eram dois. “Como duas carrancas”, diz.

Hoje em dia, ele pouco vai às ruínas. Sua casa na parte baixa, porém, é uma espécie de miniatura muito bem cuidada da construção original.

Também com paredes de pedra, tem telhas de mais de um século, algumas com a inscrição “JP”, assinatura de Julian Penrose. Os tijolos da parte interna têm a marca de uma olaria que ficava na Chácara Flora, zona sul de São Paulo. Não longe de onde Caio cresceu, no Brooklin, nem de onde ele ouviu falar da ilha pela primeira vez.

Paulistano, era vendedor de uma loja de produtos macrobióti­cos em Moema quando um cliente comprador de leite de cabra lhe propôs ser caseiro. Mudou-se com mulher e filhos, até que a mais velha fez seis anos, e a família voltou para o continente para que ela pudesse ir à escola.

Caio ficou, e tem história para contar em cada pedaço da ilha. “Ali é uma piscina natural, um berçário de peixes”, mostra, do alto do morro. “Daquele lado ficavam sete coqueiros queimados por um raio.” Num dos quartos da casa, nasceu um dos filhos de sua ex-mulher. O cordão um-

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Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress 1
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