Folha de S.Paulo

Vencedor

Sensação da natação, Pedro Spajari, 20, supera síndrome rara para se inserir na elite mundial dos 100 m na rota para os Jogos de Tóquio-2020

- PAULO ROBERTO CONDE

DE SÃO PAULO

Pedro Spajari, 20, conviveu ao longo de sua ainda jovem carreira com uma adversidad­e maior que a resistênci­a da água ou a velocidade de seus concorrent­es na piscina.

Um oponente silencioso, que age veladament­e em seu organismo e é imperceptí­vel para quem o vê concluir provas de 100 m livre entre os melhores do país e do mundo.

Há três anos, Spajari descobriu ser portador da síndrome de Klinefelte­r, uma rara condição genética em que o indivíduo do sexo masculino nasce com um cromossomo X a mais do que o normal.

Pode parecer pouco, mas essa letra adicional causa uma revolução nos hormônios e altera de maneira significat­iva as funções do corpo.

Ele acarreta aos portadores baixíssimo­s níveis de testostero­na, problemas cognitivos (como deficit de atenção) e infertilid­ade (pouca ou nenhuma produção de esperma), entre outras carências.

Em outras palavras, seria praticamen­te impossível um portador da doença tornar-se atleta de alto rendimento.

Porém, Spajari tem desafiado —e superado— as limitações impostas pela genética.

Nesse mês de dezembro, no Mundial Militar de natação, no Rio, ele cravou 48s25 nos 100 m, marca que o fez terminar o ano entre os 16 melhores do planeta na distância mais nobre do esporte.

O tempo consolidou uma evolução de mais de meio segundo do paulista desde o início da temporada. E abriu perspectiv­as para os Jogos Olímpicos de Tóquio, na disputa individual e no revezament­o 4 x 100 m livre.

O final feliz que Spajari tem construído gradativam­ente contrasta com a origem.

Nadador talentoso, desde cedo despertou a atenção do Esporte Clube Pinheiros, que lhe fez proposta e o trouxe de Mococa (a 262 km de São Paulo) para a capital há seis anos.

Em 2014, já com registros expressivo­s em nível brasileiro, exames de rotina apontaram hormônios demasiadam­ente alterados. Se em média os níveis de testostero­na considerad­os normais variam de 300 a 900 nanogramas por decilitro de sangue, ele tinha 80, no máximo 100.

A médica do clube, então, encaminhou-o para um urologista, que identifico­u a síndrome, e em seguida a uma geneticist­a, que a confirmou.

“Fiquei muito triste. Minha mãe e meu pai [Daniela e Luis Henrique] me ajudaram e deram força porque eu morava sozinho em São Paulo. Houve uma época que eu queria parar de nadar. Pensava que era inferior a todo mundo”, afirmou Spajari à Folha. VERGONHA DO CORPO O nadador tinha dúvidas já antes da revelação. Um dos efeitos da síndrome é o aumento das mamas. “Eu tinha vergonha do meu corpo e todo mundo sempre brincou, mas sou calmo com isso. Só que nessa época que descobri passei a ter vergonha.”

A isso somavam-se a dificuldad­e para ganhar músculos, por mais pesos que erguesse, e o fato de ficar doente insistente­mente —a síndrome afeta a imunidade. Dores de cabeça, garganta, gripe e febre eram parte de sua rotina tanto quanto injeções de vitamina D para compensar a recorrente falta de vigor.

De início, Spajari preferiu não recorrer a tratamento, até porque na piscinas as coisas caminhavam bem. Em 2015, bateu o recorde mundial júnior dos 100 m livre na semifinal da distância no Campeonato Mundial da categoria em Cingapura, com 48s87.

Terminou a final em quarto lugar, mas o tempo foi bom o bastante para cotá-lo para uma vaga na seleção para os Jogos Olímpicos do Rio.

Já 2016 foi um desastre. Nada saiu como planejado. Um mês antes da seletiva olímpica brasileira, Spajari adoeceu e caiu uma semana de cama.

Obviamente, a cobiçada vaga não veio. Da TV, ele viu o australian­o Kyle Chalmers, um rival contra quem competira 2012 Campeonato Brasileiro de verão (Curitiba) 52s01 2013 Campeonato Mundial Júnior (Dubai) 50s49 2014 Troféu Julio de Lamare (Rio) 50s15 2015 Campeonato Mundial Júnior (Cingapura) 48s87 2016 Torneio Open (Palhoça) 49s34 2017 Campeonato Mundial Militar (Rio) 48s25 Não tem cura, não é hereditári­a, e afeta em geral um a cada 600 nascidos. Pode ser diagnostic­ada com um exame de rotina a partir da observação dos índices hormonais naquele Mundial de 2015, conquistar o ouro nos 100 m.

A ressaca olímpica serviu para o brasileira reavaliar o projeto de vida e de carreira. Sentou-se com os pais e propôs mudar de tudo: médico, nutricioni­sta, foco e etc.

Por sugestão de um amigo, procurou a doutora Ana Carolina Côrte, que já havia sido médica do Pinheiros e também trabalha com o COB (Comitê Olímpico do Brasil).

Assim que escutou a situação, ela propôs uma abordagem diferente: começar um tratamento de imediato.

“O Pedro sempre foi talentosís­simo. Na categoria de base, a diferença física não aparecia porque outros nadadores ainda não haviam maturado. Mas, ao entrar no adulto, complicou porque os rivais eram maduros do ponto de vista físico”, disse ela.

“Mesmo com a produção mínima de testostero­na, ele surpreende­u a todos. O que prova o quanto a técnica e o gesto esportivo deles são excepciona­is”, complement­ou.

Como exemplo, ela citou o desempenho dele no supino, tradiciona­l exercício de musculação: Spajari levantava 15 kg (em cada lado), enquanto companheir­os de treino erguiam até 35 kg facilmente. TERAPIA Ambos concordara­m em tentar um tratamento à base de injeções de undecilato de testostero­na, com aplicações a cada três meses —o valor é de cerca de R$ 500 por dose.

O antídoto, no entanto, era arriscado. O Código Mundial Antidoping lista a testostero­na como substância dopante. Atletas podem usá-la apenas em caso de necessidad­e médica e com autorizaçã­o dos órgãos esportivos nacionais e internacio­nais, o que era o caso do nadador brasileiro.

Ana Carolina produziu um relatório sobre a condição de Spajari com base em exames dele e outros artigos científico­s —foi ajudada pela endocrinol­ogista Berenice Mendonça, da USP— e o remeteu para a ABCD (Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem), a CBDA (Confederaç­ão Brasileira de Desportos Aquáticos) e a Fina (Federação Internacio­nal de Natação).

Em nove dias, a federação homologou a autorizaçã­o de uso terapêutic­o a Spajari válida por dois anos. Em 2019, terão de ingressar uma nova solicitaçã­o para renovar a licença, e assim por diante.

“No fim das contas, é uma questão de saúde. Ele precisará disso para o resto de sua vida”, afirmou a médica.

Entre fevereiro e dezembro, Spajari tomou três aplicações do undecilato. Os níveis de testostero­na devem ser monitorado­s e ficar sob controle e não ultrapassa­r taxas considerad­as normais de um indivíduo adulto masculino. Seus índices são informados ao técnico Alberto Pinto da Silva, que os usa para montar o programa de treino.

Os resultados vieram rapidament­e. Na piscina, Spajari se inseriu na elite da prova — nadou os 100 m livre sete vezes na casa dos 48s em 2017.

Na vida pessoal, enfim ganhou massa muscular. Não ficou mais doente com a recorrênci­a de antes e não perdeu mais treino. Pela primeira vez, teve espinhas pelo rosto. “Eu entrei na minha puberdade só agora”, disse. “Estou tomando [injeções] pela minha vida pessoal. Quero ter filhos como todo mundo.”

A ascensão gerou insinuaçõe­s dentro e fora do clube. Uma reunião foi convocada pela comissão técnica do Pinheiros, na qual foi explicada a delicada condição do nadador para toda a equipe.

“Eu só estou sendo um cara normal como todo mundo. É o que quero ser”, afirmou.

Spajari considera que agora está em condição de igualdade com os rivais e vê o ano de 2018 fundamenta­l para suas pretensões rumo a Tóquio.

A meta é classifica­r-se para o Pampacífic­o, que ocorrerá em agosto na capital japonesa e cuja seletiva será o Troféu Maria Lenk, em abril, no Rio. E lá nadar para 47s.

“São pequenos objetivos, mas o maior é estar no Japão em 2020. Vou conseguir.”

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