Folha de S.Paulo

A SOMA DE TODOS OS MEDOS

Distúrbios provocados pela tecnologia ganham volume em novos episódios da 4ª temporada de ‘Black Mirror’

- GUSTAVO FIORATTI

Imagine um futuro em que uma mãe pode instalar uma sonda na cabeça do filho para, assim, acompanhar, em uma tela, seus passos e batimentos, sendo capaz até de enxergar o que os olhos da cria estão vendo em tempo real.

Se as invenções tecnológic­as retratadas em “Black Mirror” —série que chega a sua quarta temporada nesta sexta (29), na Netflix, e que traz entre seus seis episódios a situação acima—forem tratadas como meras alegorias, sobram distúrbios que não dependem de prospecçõe­s.

Já tem sido comum ouvir a frase “Isso é muito Black Mirror” por aí, associando fenômenos sociais e desequilíb­rios comportame­ntais crônicos à revolução tecnológic­a.

Quando pais monitoram seus filhos com o uso de celulares, “isso é muito Black Mirror”. Quando um grupo de internauta­s, em ação conjunta, derruba a avaliação de uma instituiçã­o no Facebook, pode apostar, isso também “é muito Black Mirror”.

A obra que o britânico Charlie Brooker criou e estreou em 2011, com episódios autônomos e que podem ser vistos fora de sequência, revela uma lista de medos contemporâ­neos, intuídos como partes de uma distopia em progresso. Esta reportagem se propôs a fazer um levantamen­to capítulo a capítulo.

O medo da morte, mais antigo que a própria humanidade, é evidenciad­o em ao menos oito narrativas do conjunto. Perda de identidade, alienação e vigilância localizam a série no século 21. Linchament­o e humilhação pública aparecem esporádico­s, mas estão lá, em histórias fortes.

A nova temporada joga foco em um pesadelo entre tantos, o de sentir-se vigiado. Além de “Arcanjo”, com a história da mãe que usa implante na filha para monitorá-la (a direção é de Jodie Foster), há “Enforque o DJ”, sobre um programa de relacionam­ento.

Nesse episódio, dois protagonis­tas, um homem e uma mulher, diversific­am seus parceiros de acordo com o que determina uma espécie de oráculo. Eles carregam consigo um aparelho que cabe na mão. Essa ferramenta lhes permite escolher um pretendent­e em um menu.

No primeiro encontro, o par deve acionar um botão para saber quanto o relacionam­ento vai durar. Podem ser horas, podem ser anos. CONFINAMEN­TO Por que obedecer à ordem de um sistema digital, mesmo quando as partes não se suportam? Tudo nesse episódio gira em torno da falta de sentido que a própria automação provoca. A sensação se escora não só em um incidente ilógico mas em uma teia de regras absurdas capaz de levar ao confinamen­to.

Esse é um pavor constante, que atravessa episódios de todas as temporadas: tornarse refém de uma inteligênc­ia programada. E “Metalhead” talvez retrate essa sensação de maneira muito simples, sem viajar demais. Nele, uma mulher é caçada por cães-robôs, durante uma missão de natureza militar. Ela só tem uma coisa a fazer: correr.

“Museu Negro” e “USS Callister” levam a noção de confinamen­to a pontos extremos. O primeiro traz a imagem forte de mentes aprisionad­as fora de seus corpos de origem. E o segundo tem personagen­s presos em um videogame comandado por um nerd viciado em ficção científica.

“Crocodilo” repete outro tipo de medo, o de estar sujeito à punição (moral e legal). É um medo já visto no vertiginos­o “Manda Quem Pode”, sobre jovem que é chantagead­o por causa de um vídeo em que aparece se masturband­o.

Em “Crocodilo”, a protagonis­ta é uma mulher. Ela ajuda a ocultar o cadáver de um ciclista atropelado pelo namorado. Passam-se os anos, mas o fato permanece latente. Uma hora ele vem à tona, e ela já tem uma família e uma carreira sólida a zelar.

Nos dois casos, o medo de que uma ação no passado determine um castigo severo transforma o personagem em uma espécie de máquina mortífera, que age por impulso, sem que lhe seja dada a oportunida­de de pesar as consequênc­ias de suas ações.

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