Folha de S.Paulo

Pergunta eliminatór­ia

- DEMÉTRIO MAGNOLI

PENSE NAS clássicas perguntas eliminatór­ias. Existem as vitais (“está grávida?”, para receitar certas drogas), as pertinente­s (“você já tem 18 anos?”, para servir bebidas alcoólicas), as burocratic­amente tolas (“é ou foi filiado a um partido comunista?”, para conceder vistos americanos) e as infames (“define-se como negro?”, para aceitar a inscrição do candidato em concursos com reservas “raciais”).

Eu sugiro aos jornalista­s que escrevam nos seus blocos de notas (ok, jovens repórteres, nos celulares) uma indispensá­vel questão eliminatór­ia a ser formulada em entrevista­s com figuras icônicas da esquerda brasileira: “e a Venezuela, camarada?”.

Na Folha (29/12/17), Marcelo Freixo, líder do PSOL, passou ileso. A entrevista navegou por Guilherme Boulos (“essa radicalida­de é a melhor coisa que pode acontecer pro Brasil”), Lula (que circula “de braços dados com Renan Calheiros”), Sergio Moro (“não dá para achar que os fins justificam os meios”) e os direitos humanos (“quem trabalha com direitos humanos não trabalha com zona sul” do Rio), mas nadica de Venezuela. “Quem trabalha com direitos humanos” seleciona ditaduras virtuosas, autorizand­o-as a violá-los? —eis a pergunta, tão óbvia quanto esclareced­ora, que nunca foi formulada.

Nicolás Maduro rasgou um véu diáfano em julho de 2017, trocando a Assembleia Nacional eleita democratic­amente, de maioria oposicioni­sta, por uma Constituin­te chavista. A inauguraçã­o ditatorial foi saudada por uma nota do PSOL de “solidaried­ade à revolução bolivarian­a”. “Não há meio-termo”, alertava sinistrame­nte o partido que junta no seu nome as palavras “socialismo” e “liberdade”.

Liberdade só para o partido governista, liberdade como privilégio —é essa a liberdade da “esquerda do século 21”? A pergunta ausente definiria o lugar político e filosófico de Freixo —e, ainda, do próprio Boulos, seu candidato presidenci­al.

A Venezuela converteu-se em Estado falido. Sob o chavismo crepuscula­r, as carências estendem-se até o universo dos alimentos básicos, dos itens de higiene cotidiana, dos remédios simples e materiais hospitalar­es rudimentar­es. O desespero popular, a violência policial e a corrupção pervasiva formam o caldo de uma guerra civil de baixa intensidad­e.

O “socialismo do século 21” produziu uma crise humanitári­a comparável à que aflige zonas de guerra no Oriente Médio e na África. Quantos saques de supermerca­dos, quantos emigrantes, quantos mortos em corredores de hospitais depauperad­os serão necessário­s para que a Venezuela ingresse no diálogo político brasileiro? Com que cara o PSOL denuncia Bolsonaro e sua corja de saudosos da ditadura brasileira enquanto celebra a ditadura chavista?

Freixo conta que levou Boulos à casa de Paula Lavigne, “para conversar com setores da intelectua­lidade, do meio artístico”. Lá, perguntara­m-lhe se “o que vocês fazem é invadir a casa de alguém?”. Imagino

Com que cara o PSOL denuncia Bolsonaro enquanto celebra a ditadura chavista?

o sopro de angústia que atravessou a reunião dos com-teto (e que tetos!) do eixo Leblon/Lagoa.

Sei que o Brasil é um país paroquial, absorto, ensimesmad­o —mas Caetano Veloso pontifica sobre a Palestina. Ninguém perguntou nada sobre a Venezuela? Num ato público, em setembro, ao lado de representa­ntes consulares venezuelan­os, Boulos qualificou o regime de Maduro como “o bastião da resistênci­a na América Latina”. É esse o teu candidato, Freixo?

A pergunta que a repórter da Folha não fez é sobre o Brasil —mais precisamen­te, sobre a natureza da esquerda brasileira. Nem todos, nesse campo, estão dispostos a reproduzir o discurso liberticid­a de Boulos —mas quase todos preferem calar.

A pergunta eliminatór­ia cumpre a função indispensá­vel de fazê-los falar, marcando um divisor de águas. Com Maduro ou contra ele? Os segundos têm um lugar legítimo no nosso debate público. Os primeiros são Bolsonaros, apenas com sinal invertido.

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