Folha de S.Paulo

Memória inflacioná­ria

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SÃO PAULO – Tão dominante em tantos aspectos do dia a dia, a hiperinfla­ção deixou reminiscên­cias nos que não mais somos jovens.

No exemplo pessoal, uma cena tórrida: fila, muita fila, mas muita fila mesmo, calçada afora dos bancos no verão mato-grossense de 1990, sol na cabeça numa época de temperatur­as nada aprazíveis.

À época, as agruras da altíssima inflação acrescenta­vam ao ofício de office-boy dramas como o daquele Plano Collor 1: agências reabertas depois de alguns dias de fechamento para um pacote do governo, o caos nos caixas após explicaçõe­s incompreen­síveis da ministra da Economia e do presidente do Banco Central.

Confusão inútil; a híper sobreviveu, acrescida de recessão. Como se sabe, o dragão só seria domado com o Plano Real, escoltado em 1999 pelo sistema de metas de inflação.

Sistema que, vale lembrar, aquele presidente do BC de Collor (Ibrahim Eris) dizia cheirar a fracasso e que o futuro ministro Guido Mantega considerav­a “uma estratégia tosca e inadequada para ancorar a política econômica”.

Desfeitas as bagunças que os dois deixaram quando no poder, a inflação agora completa o ano em 2,95% —abaixo pela primeira vez do piso da meta—, algo que dá algum conforto civilizató­rio aos que se lembram da híper. Quem tiver dúvida pode perguntar aos venezuelan­os.

Conforto maior haverá aqui quando outros índices, os que medem a remuneraçã­o do dinheiro, estiverem também eles em nível civilizado.

A Selic mais baixa em duas décadas não conta toda a história. Quem precisa de empréstimo ainda sofre calafrios estilo anos 90 ao pensar nos bancos, sempre tão confortáve­is no mercado brasileiro. Do outro lado, quem tem dinheiro ainda pode se dar ao luxo de preferir o quentinho dos fundos de investimen­to a empreender, inovar, tomar risco —aquelas práticas que criam coisas bem mais inesquecív­eis do que fila de banco. roberto.dias@grupofolha.com.br

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