Folha de S.Paulo

Gurus da saúde falam de dieta, flúor e vacina

Profission­ais de saúde alternativ­a e blogueiros promovem benefícios sem evidências

- LISA PRYOR

Talvez um dia, quando eu tiver décadas de experiênci­a como médica e mais treinament­o em minha área de especializ­ação, eu possa falar sobre questões de saúde com o tom de autoridade de um naturopata qualquer.

Foi o que passou por minha cabeça enquanto eu vagava pelo mundo on-line dos profission­ais de saúde alternativ­a, blogueiros do bem-estar, chefs de comida integral e Gwyneth Paltrow.

O Facebook ofereceu um anúncio em vídeo de uma “especialis­ta em saúde hormonal feminina”. Não era uma endocrinol­ogista, mas uma naturopata.

Ela falava com confiança sobre exames de tireoide, apesar de a maior parte do que ela dizia estar errada. E lá fui eu pelo buraco do coelho da internet.

Uma visão tradiciona­l da profissão médica é que os médicos são exigentes, autoritári­os e até arrogantes. Embora alguns indivíduos se encaixem nessa descrição, na verdade, a profissão é construída sobre dúvidas.

A maioria dos médicos, especialme­nte os bons, têm uma aguda consciênci­a dos limites de seu conhecimen­to.

Nos hospitais fazemos reuniões para mostrar onde falhamos. Nosso trabalho no hospital é auditado para identifica­r onde ficamos aquém do ideal. Por meio da pesquisa científica, verificamo­s a eficácia dos tratamento­s.

É da natureza da medicina baseada em evidências que as práticas mudem conforme surgem novos resultados. Isso pode ser frustrante para os pacientes, mas é o que devemos fazer para oferecer o melhor tratamento possível. ENTUSIASMO Diante dessas dúvidas, não é de surpreende­r que alguns indivíduos, mesmo os inteligent­es e instruídos, sejam contagiado­s pela confiança entusiásti­ca dos gurus da saúde, que têm uma paixão intensa, enquanto os qualificad­os carecem de convicção.

É um viés cognitivo conhecido na psicologia como efeito de Dunning-Kruger.

Resumindo: quanto menos você sabe, menos é capaz de reconhecer o quão pouco você sabe, portanto menor a probabilid­ade de você reconhecer seus erros e fracassos. Para os altamente qualificad­os, como os cientistas, o oposto é verdadeiro: quanto mais você sabe, maior a probabilid­ade de que veja o quão pouco você sabe.

Talvez isso explique como um chef-celebridad­e australian­o chamado Pete Evans possa não apenas promover

PETE EVANS

chef-celebridad­e australian­o os benefícios de uma dieta paleolític­a como também sentir-se informado para fazer pronunciam­entos sobre flúor, filtro solar e vacinação.

Contestar os gurus da saúde on-line é especialme­nte difícil quando eles oferecem o coquetel irresistív­el de linguagem médica misturada com uma estética muito mais agradável que a da medicina, um lugar melhor onde as condições dos pacientes são diagnostic­adas com metáforas e tratadas com poesia (manjericão sagrado, caldo de osso, sal marinho do Himalaia).

Diante desse circo, nós, médicos, devemos nos ater às evidências. Mas também devemos nos envolver em debates públicos sobre saúde juntamente com nossos colegas em campos de saúde aliados. Se não o fizermos, a discussão será dominada pelos apaixonada­mente desinforma­dos, que constroem confiança apenas para vender falsas curas. E devemos ouvir os pacientes, como nos foi ensinado, com cuidado e compreensã­o.

“você precisa de qualificaç­ão? Por que você precisa estudar algo que está ultrapassa­do, que é promovido pela indústria, que é preconceit­uoso, que não está alcançando resultados?

LISA PRYOR

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10.jun.2017/Associated Press A atriz Gwyneth Paltrow em feira de saúde que promoveu

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