Folha de S.Paulo

Judiciário e democracia?

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Governante­s que abusam do poder em democracia­s satanizam o Judiciário e as procurador­ias. Silvio Berlusconi denunciou “a toga rossa” —os “magistrado­s vermelhos”. Jacob Zuma, o presidente sul-africano que responde a 783 processos, acusou o Procurador­Geral de perseguiçã­o. Donald Trump demitiu 46 procurador­es - 47 já haviam pedido demissão antes. E criticou abertament­e o Judiciário: “juízes federais não são eleitos”, como se as urnas devessem garantir impunidade.

O Judiciário independen­te é a solução democrátic­a para a “justiça” praticada por autocratas ou por maiorias de ocasião. É remédio a um só tempo para a arbítrio do tirano e para a sanha incontida da turba.

As acusações infundadas ao Judiciário confundem-se no debate público brasileiro com críticas legítimas. De fato, não cabe ao Judiciário usurpar escolhas políticas próprias dos demais poderes embora seja cada vez mais provocado a fazêlo. A linha de demarcação da separação de poderes é tortuosa e exige autoconten­ção. Da mesma forma são intoleráve­is as patologias patrimonia­listas de seu aparato burocrátic­o.

Mas é preciso lembrar que o crime colonizou as instituiçõ­es no país, afetando até mesmo as judiciais. Essa gravíssima politizaçã­o do crime tem sido percebida apressadam­ente como criminaliz­ação ou interdição da política.

A judicializ­ação da política —que é universal— não significa necessaria­mente usurpação. Reflete a transferên­cia —por omissão ou provocação— de decisões de elevado custo político do legislativ­o para o Judiciário. E no caso brasileiro também o hiperprota­gonismo judicial induzido por demandas crescentes por arbitragem produzidas pela crise política (que o individual­ismo na corte acirra ).

Contrapor democracia e Judiciário é equívoco sério, sobretudo em matéria criminal. John Ferejohn (New York Law School), propôs a fórmula “Judiciário dependente, juízes independen­tes” para expressar o dilema envolvido. Um Judiciário insulado engendra um déficit democrátic­o. Para mitigálo os Federalist­as propuseram a nomeação e confirmaçã­o dos membros das cortes superiores pelos poderes eleitos e não auto-recrutamen­to. Assim ao decidirem sobre questões com implicaçõe­s políticas e morais expressarã­o valores majoritári­os.

De outra forma seriam percebidos como fora de sintonia com o seu tempo ou auto-referidos. Esse nexo político com os poderes eleitos contrasta com a grande independên­cia assegurada aos juízes através de prerrogati­vas individuai­s amplas.

O desafio institucio­nal do Judiciário é conciliar o majoritari­anismo decorrente do caráter político da investidur­a com o constituci­onalismo que é contramajo­ritário por excelência. Não há fórmula pronta.

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