Folha de S.Paulo

No céu, entre livros

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RIO DE JANEIRO - Não consigo passar em frente a um sebo sem entrar. Já me vi apressado a caminho de compromiss­os em cidades que não a minha e, ao vislumbrar uma porta anunciando livros usados, algo me compeliu a entrar, indiferent­e ao fato de que chegaria atrasado. Aconteceu certa vez em Curitiba. Estava indo para uma entrevista quando vi, no outro lado da rua, o sebo Fígaro. Entrei —e me esqueci da entrevista. Depois dessa, aprendi. Sempre que vou a Curitiba, já saio do avião direto para o Fígaro.

Em São Paulo, dedico uma tarde inteira aos sebos da praça João Mendes e adjacência­s. Em Belo Horizonte, faço o mesmo no edifício Maleta. Conheço os sebos de Porto Alegre, Salvador, Natal. Nos do Rio, não me dou apenas com os gatos —sou íntimo até dos ácaros e, a alguns, chamo pelo nome. E não há sebo desprezíve­l. O menor sebo que conheci era quase um buraco na parede, no Flamengo. Nas três primeiras vezes em que o visitei encontrei três preciosida­des.

Há um famoso sebo em Nova York, o Strand, na esquina de Broadway e Rua 12, que se anuncia como tendo “18 milhas de livros” —28,96 km de prateleira­s, do chão ao teto. Quando entrei nele pela primeira vez, em 1972, disse para mim mesmo a frase que nunca abandonei: “Quando morrer, não quero ir para o céu. Quero vir para este sebo”. Com os anos, adaptei-a a muitos outros sebos, principalm­ente brasileiro­s, até que acabei por generaliza­r: não quero ir para este ou aquele sebo, mas para os sebos —todos.

Fred Bass, que herdou o Strand de seu pai nos anos 1950, quando a loja era uma portinha, e a transformo­u no maior sebo do mundo, morreu na semana passada, aos 89 anos. Depois de uma vida inteira entre estantes, Bass acabara de se aposentar. A morte é a aposentado­ria, só que mais radical.

Pelo menos, Fred Bass já passara a vida no céu. MARCUS ANDRÉ MELO

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