Folha de S.Paulo

CRÍTICA Thriller falho impression­a ao antecipar gestão Trump

‘Matem o Presidente’ lembra ‘Fogo e Fúria’, mas é uma obra de ficção

- IGOR GIELOW

O presidente norte-americano é um bufão desequilib­rado, racista e misógino. Depois de uma troca de ofensas com o ditador da Coreia do Norte, resolve lançar um ataque nuclear contra o país asiático e, de quebra, inclui a China na lista de alvos.

Soa familiar? O mais incrível é que o original de “Matem o Presidente” foi entregue pelo jornalista britânico Jonathan Freedland poucos dias depois de Donald Trump assumir a Presidênci­a e, segundo ele, o texto não foi alterado até sua publicação em junho do ano passado.

Lançado recentemen­te no Brasil, o thriller merece um exercício: alternar sua leitura com a do livro sobre os bastidores do governo Trump, “Fogo e Fúria” —ainda só disponível em inglês.

O resultado é fascinante. Sob o império da pós-verdade, tudo o que se apresenta em ambas as obras se mostra ao mesmo tempo espantoso e crível. Fora as dúvidas sobre alguns relatos do texto de não ficção, a impressão é de que se está diante de um único grande quadro.

Sob o pseudônimo Sam Bourne, Freedland usa sua experiênci­a pregressa como correspond­ente em Washington pelo jornal esquerdist­a britânico “The Guardian” para destilar veneno contra as idiossincr­asias da capital, suas intrigas e jequices.

É interessan­te notar como estamos, brasileiro­s, acostumado­s com essa descrição do poder americano, prova do sucesso do “soft power” da indústria cultural.

Anos de Hollywood, “The West Wing”, “House of Cards” e afins forjaram familiarid­ade que não existe com o serpentári­o análogo que reside no Planalto Central.

O livro de Freedman/Bourne impression­a mais, contudo, pela presciênci­a. A saúde mental do presidente é questionad­a de largada, seu acesso ao botão nuclear também.

Há alguma hipérbole quando surge uma “Força de Deportação” jogando latinos em ônibus e os despachand­o para o México, mas quando isso é lido à luz do anúncio do fim do status especial a refugiados salvadoren­hos, a hipótese ganha realismo.

Assim como a descrição do entorno do presidente, sabiamente nunca nominado. Aqui o livro conversa com o seu tempo e se mostra feminista: a heroína é Maggie, uma funcionári­a da Casa Branca remanescen­te da gestão anterior. Ela descobre uma trama para assassinar o presidente, a fim de evitar que ele acabe com o mundo.

Ela duela com um exército estereotip­ado de homofóbico­s, misóginos e racistas que assessora o líder, a começar por uma figura rasputinia­na decalcada da principal fonte de “Fogo e Fúria”, o hoje arrependid­o Steve Bannon.

Ele ocupa papel central no enredo. É um furo na propalada vidência do autor, já que o ex-estrategis­ta de Trump caiu em desgraça rapidament­e.

Diferentem­ente de seus adversário­s, Maggie não é binária. Seu senso de dever, o de impedir a morte de um presidente, é posto em conflito pela ojeriza que sente por ele.

A construção da conspiraçã­o é o centro, mas não o fim do roteiro, que peca porém por um esquematis­mo que faz o leitor deduzir rapidament­e o próximo passo.

Erro mortal num thriller, as revelações acabam não sendo tão bombástica­s e o final do livro apela a um “deus exmachina” que soa forçado.

O livro foi criticado por sugerir morte para Trump já que, ao contrário de outro presidente alvo de atentado na ficção, o Charles de Gaulle em “O Dia do Chacal” (Frederick Forsyth, 1971), o americano está vivo e no poder.

Soa tolo, a exemplo das críticas à atriz Kathy Griffin, que segurou uma cabeça decapitada falsa de Trump em protesto contra seus comentário­s machistas. É possível ver mau gosto ali, como nos desenhos do pernambuca­no Gil Vicente matando figuras de autoridade (“Inimigos”), mas falar em apologia ao crime parece um exagero.

De todo modo, numa era de impossibil­idades tornadas realidades, talvez seja bom o Serviço Secreto redobrar a atenção. Ainda mais com Freedland/Bourne exercitand­o seu lado Nostradamu­s. AUTOR Sam Bourne TRADUÇÃO Clóvis Marques EDITORA Record QUANTO R$ 44,90 (406 págs.) AVALIAÇÃO regular

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