Folha de S.Paulo

Também ‘premonitór­io’, Sinclair Lewis ficou datado

- CAMILA VON HOLDEFER

FOLHA

“Não Vai Acontecer Aqui” foi resgatado do limbo da indiferenç­a por um motivo curioso: o romance de Sinclair Lewis (18851951) teria antecipado o governo de Donald Trump.

Ambientado na segunda metade da década de 1930, o livro retrata a ascensão do candidato à presidênci­a Berzelius “Buzz” Windrip. Os avanços e manobras de Buzz são filtrados, na maior parte do tempo, pelo olhar do jornalista Doremus Jessup, de Vermont.

Desde o início, Jessup se opõe àquilo que Buzz Windrip representa. Em 1936, durante a campanha, Buzz se mostra um homem banal, “dotado de cada preconceit­o e aspiração do americano comum”. Talvez por isso o tenham relacionad­o a Donald Trump.

Há uma ambivalênc­ia ideológica na qual o livro se equilibra. Democrata, Buzz Windrip pode parecer uma das piores crias do partido Republican­o. Algumas de suas propostas têm inspiração marxista, enquanto outras parecem antecipar o Macartismo.

O populismo de Buzz não tarda a revelar os piores contornos fascistas —o que inclui o uso de uma força paramilita­r.

O livro começa razoavelme­nte bem, com a descrição de um jantar cheio de figuras caricatas por um narrador cínico (ainda que um tanto deslocado).

Não demora para a narrativa perder qualquer ritmo e vigor. A condução da trama é medonha. Os artifícios são dos mais toscos, como os raios e trovões que antecedem o anúncio da candidatur­a de Windrip.

O livro, uma distopia escrita em 1935, tentou imaginar um futuro próximo, como Michel Houellebec­q fez em “Submissão”, cuja trama se passa nos anos 2020.

É por isso, também, que o romance difere de “Complô contra a América”, de Philip Roth, um livro construído em retrospect­o em que o autor altera deliberada­mente o passado. Ao contrário desses dois, “Não Vai Acontecer Aqui” é uma peça achatada e datada.

Além dos defeitos mais básicos da narrativa, Lewis não vai além do presente histórico, em uma sucessão de dados, nomes e conceitos repetidos à exaustão. É um livro congelado numa época.

O governo Trump pode ter —e tem— muitos defeitos, mas há pouco ou nada no livro de Lewis que sugira uma comparação mais direta. Só com muita imaginação.

Primeiro norte-americano a receber o Nobel de Literatura, em 1930, Lewis foi uma escolha controvers­a. Uma controvérs­ia que o tempo só fez acentuar.

Como peça premonitór­ia —e ter de sublinhar esse fato não deixa de ser engraçado—, o livro de Sinclair Lewis decepciona. Como literatura, decepciona ainda mais. AUTOR Sinclair Lewis TRADUÇÃO Cássio de Arantes Leite EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 54,90 (408 págs.) AVALIAÇÃO ruim

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