Folha de S.Paulo

Querido Deus

- GREGORIO DUVIVIER COLUNISTAS DA SEMANA: terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo, quinta: José Simão, sexta: Renato Terra, sábado: José Simão, domingo: Ricardo Araújo Pereira

QUERIDO DEUS,

antes de mais nada, desculpa qualquer coisa. Sei que faz tempo que eu não falo com você. A última vez foi naquele meio segundo em que um ônibus veio desgoverna­do na minha direção. Foi tão rápido que o senhor nem deve lembrar. Ah, o senhor lembra de tudo? Então, era eu.

Tô super em falta, eu sei. E sim, eu sei que é estranho agradecer a alguém que eu costumo achar que não existe. É que o senhor, com todo respeito, deu alguns indícios fortes de que não existia. Aquele avião da Chapecoens­e, o câncer de uma amiga, o Temer ter sobrevivid­o àquela pedra. Tudo indicava que o senhor, ou bem não existia, ou bem fazia péssimas escolhas.

Até que minha filha nasceu. E desde que ela nasceu, linda, cabeluda, bochechuda, e risonha, e mama horas seguidas, e arrota no meu ombro um arroto com cheiro de lavanda, e baba uma baba com cheirinho de nuvem e depois suspira e dorme encostada no meu peito, e meu dedo mindinho encosta na palma da mão dela e ela segura com toda a força do mundo, e enquanto isso a palma da minha outra mão sente um pum saindo do bumbum dela, e eu olho pra minha mulher e ela tá rindo o riso mais bonito do planeta, ela tá com o cabelo desgrenhad­o, o olhar de quem não dorme há três dias e só um peito pra fora todo embebido de gordura de picanha que é a única coisa que faz a dor passar, e, ainda assim, ela é a mulher mais bonita que eu já vi em toda a minha vida, e a gente fica rindo e já nem lembra o porquê, mesmo sabendo que essa noite nenhum de nós três vai dormir, mas quem é que se importa em dormir, dormir é superestim­ado, sexo é superestim­ado, sair de casa é superestim­ado, bom mesmo é sentir o cheiro dessa cabecinha perfumada e dançar os três apertadinh­os pelo apartament­o, e de repente o som começa a tocar “em algum momento da minha infância ou juventude”, é a Fraulein Maria cantando pro Capitão Von Trapp, “eu devo ter feito alguma coisa certa, afinal você tá aqui, na minha frente, me amando”, e a gente se olha e começa a chorar, e eu já nem sei se é tarde demais pra dizer: Obrigado, Senhor.

(Agora me ocorreu que o Senhor pode ter feito esse agrado somente pela minha mulher que, de fato, costuma agradecer muito ao Senhor. Mas também agradece a Iemanjá, Oxóssi, Krishna, santo Expedito, a Dalai Lama, às estrelas e ao Cosmos. Nesse caso, obrigado por não ter ciúmes e aceitar esse relacionam­ento aberto.)

Tudo indicava que o senhor ou não existia, ou fazia péssimas escolhas. Até que a minha filha nasceu

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Catarina Bessell

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