Folha de S.Paulo

Do Google ao Gulag

- JOEL PINHEIRO DA FONSECA

EM AGOSTO do ano passado, o Google demitiu o engenheiro de software James Damore por ter escrito um texto que questionav­a a política de diversidad­e de gênero da empresa. Agora o jogo virou. Damore iniciou uma ação conjunta contra o Google, alegando que a empresa discrimina ativamente homens brancos e pessoas de posicionam­ento conservado­r. Independen­temente do resultado final, um efeito maior já foi conseguido: escancarou a cultura de perseguiçã­o ideológica dentro da empresa.

Gerentes desejando publicamen­te a demissão de funcionári­os republican­os, colegas de trabalho distribuin­do “peer bonuses” (pontuação criada com o intuito de premiar o desempenho profission­al de colegas) com base em concordânc­ia ideológica, listas negras, caça às bruxas. Está tudo lá nas dezenas de páginas de mensagens e posts de plataforma­s internas do Google.

Ao agir dessa forma, os funcionári­os acreditava­m dar mostra de suas maiores virtudes, lutar por seus ideais. A justificat­iva é a mesma de sempre, tão familiar às discussões nas redes sociais: nosso inimigo não é alguém que simplesmen­te discorda de nós. É um nazista; e nazista de Hollywood (ou seja, sem nenhum traço humano), e nós estamos em uma santa cruzada.

Essa fantasia ajuda a justificar condutas que, olhadas de forma imparcial —isto é, abstraindo do conteúdo ideológico—, ficam menos admiráveis. Sem falar que são contraprod­ucentes: quando você se opõe a alguém no campo dos valores, o resultado é alienar essa pessoa, produzir mártires (como James Damore) e empurrar todos os que pensam como ela para o lado que você gostaria de enfraquece­r.

Dentro de uma empresa, o resultado é limitado. Na esfera pública, pode ser devastador. As grandes empresas de mídia (social e tradiciona­l) estão perdendo a confiança de metade da população. E quanto mais se convencem de que lutam por uma boa causa, mais o problema se agrava. Na ânsia de pintar Trump como um monstro (em vez de um incompeten­te, ou um corrupto) e erradicar a alt-right, apenas o fortalecer­am e empurraram seus apoiadores para o radicalism­o.

Convicções políticas não brotam da nossa inteligênc­ia ou caráter; obedecem à lógica da identidade coletiva. Somos parte de um grupo que, para ficar unido, precisa partilhar gostos, estilos e valores. Isso tem aspectos bons e ruins. Do lado bom, somos a única espécie animal em que indivíduos sem parentesco cooperam por um bem maior. Do lado ruim, desumaniza­mos quem está do outro lado.

Humilhar (ou demitir) o adversário é um jeito de fortalecer o espírito do nosso grupo, bem como nossa reputação dentro dele. Mas o resultado é que ficamos mais aferrados a nossos erros, e mais propensos a sermos canalhas com quem discorda de nós.

Se quisermos frear o avanço do sectarismo ideológico e seus extremos, o caminho é o exato oposto: entender de onde parte o discurso que nos revolta e encontrar os valores em comum.

Quando pensamos assim, três coisas acontecem: a primeira é a descoberta de que o eleitor do Bolsonaro (ou do Lula) não é um nazista de filme. A segunda, é que você também não é um herói. A terceira, e social, é recriar a possibilid­ade de conviver apesar das diferenças. Não é o meu time contra o seu, o meu “ismo” contra o seu, pois somos parte de um time maior: o Brasil.

Se quisermos frear o avanço do sectarismo ideológico precisamos entender de onde parte o discurso

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