Folha de S.Paulo

‘Nós’, as mulheres, criando meninas

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; VERA IACONELLI terça: Vera Iaconelli; quarta: Ilona Szabó de Carvalho; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

NA COMPARAÇÃO, sempre estamos perdendo para alguém. Se você é homem, branco, rico e primeiro-mundista, pode ter fantasias homicidas quando seu vizinho estaciona um carro melhor que o seu na garagem (o que explica a inesgotáve­l ganância de alguns bilionário­s). A insistênci­a em nos compararmo­s continuame­nte com os outros, inconforma­dos com nossa mediocrida­de existencia­l —que a comparação tenta despistar—, é uma das motivações básicas da violência humana. Acalentar a fantasia de que existiria um humano acima dos demais é a fonte do sonho fascista.

Quando criança eu queria ser menino sempre que esbarrava nos inexplicáv­eis privilégio­s de meus irmãos, cuja justificat­iva humilhante, era: “ele pode porque ele é menino” e seu duplo, “você não pode porque você é menina”. Quando as meninas descobrem o mundo dos privilégio­s masculinos, têm que lidar com a injustiça, com o ressentime­nto e elaborar a perda social ligada ao sexo.

Todas as meninas têm necessaria­mente um pai (nem que seja via banco de esperma), eventualme­nte um padrasto e certamente amigos marcando para elas os tipos de homens que as mães, por razões inconscien­tes, quiseram e querem ter a seu lado. Nesse caso, podemos ter o discurso feminista mais politicame­nte correto e, ainda sim, mostrar para nossas filhas que escolhemos ter ao nosso lado homens que nos subestimam e humilham, por exemplo. Por outro lado, casais ditos antiquados podem exemplific­ar relações igualitári­as entre gêneros.

Recentemen­te, minha filha me contava que um colega, que falou algo considerad­o misógino no coletivo feminista da escola, foi achincalha­do. Ao que ela argumentou que seria bem melhor ele falar, pois só assim saberiam seus argumentos e poderiam pensar juntos, talvez demovê-lo, talvez entender sua lógica.

Essa singela experiênci­a, pinçada entre outras que as meninas trazem, me lembra que o pior que podemos fazer nos debates feministas é constrange­r o diálogo.

O feminismo veio para ficar e seus avanços são incontorná­veis, embora metade da população mundial ainda seja oprimida por ser mulher e a maioria absoluta de nós viva em condições deplorávei­s, por esse mesmo motivo. Mas como todo movimento, o feminismo requer um debate permanente, que revele suas contradiçõ­es internas e avance. Militância­s, quando buscam nivelar suas opiniões criando um “nós” supostamen­te homogêneo e consistent­e, negam as singularid­ades e correm o risco de se tornarem tão fascistas quanto o que tentam combater. O suposto embate França-EUA é relevante porque, em nome da mídia, as reflexões de todos os pensadores de dois países foram reduzidas a duas ou três falas pasteuriza­das e superficia­is. A virulência de algumas colocações revela o temor de lidar com as diferenças dentro do movimento.

A questão da judicializ­ação das relações humanas —se um chefe pode ficar numa sala a sós com sua funcionári­a ou não (serve para chefes lésbicas também!?), por exemplo— é alarmante e não pode ser confundida com as conquistas de leis imprescind­íveis como a Lei Maria da Penha, para citar uma.

As mulheres não desejam todas as mesmas coisas, lutemos assumindo isso. Assumindo que o pronome “nós”, quando se trata de humanos, só justifica seu uso em defesa do “nosso” direito de escolha.

Os avanços do feminismo são incontorná­veis, mas ele requer debate permanente sobre suas contradiçõ­es

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