Folha de S.Paulo

Ligação direta

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“Não existe uma ligação direta, forte, entre a corrupção e o problema fiscal do Estado brasileiro”, disse em palestra Samuel Pessôa, colega colunista e de FGV.

Samuel é um dos melhores intelectua­is públicos do país, mas está equivocado. Na experiênci­a democrátic­a brasileira, o problema fiscal do Estado e a corrupção endêmica têm raiz comum. São duas caracterís­ticas da Nova República que têm tudo a ver uma com a outra.

O problema fiscal, como Samuel aponta há tempos, reside na concessão de vantagens excepciona­is a grupos de interesse enquistado­s no Estado cuja força é suficiente para manter o fluxo de recursos públicos jorrando mesmo quando isso é incompatív­el com a realidade orçamentár­ia. A dívida e ineficiênc­ia que resultam são custeadas por toda a população.

Assim como ocorre com o problema fiscal, a corrupção endêmica também reside na dominância dos grupos de interesse. Quando a Nova República foi negociada, a velha elite que prosperou durante a ditadura buscou salvaguard­as para se proteger do choque do sufrágio universal. Para isso, criou um sistema de regras talhadas no qual a classe política protege grupos de interesse antes de prover bens públicos para a maioria desorganiz­ada dos eleitores.

Em nosso sistema, a corrupção endêmica é o pedágio que os grupos de interesse pagam à classe política para fazer a roda girar. Também é o pedágio que o Executivo paga aos partidos políticos e a seus caciques para formar a maioria parlamenta­r sem a qual o ocupante do Palácio do Planalto não consegue governar.

Nesse sistema, as instituiçõ­es de controle fazem vista grossa à apropriaçã­o particular­ista de recursos públicos. Grandes conglomera­dos rentistas compram junto aos deputados e ao Executivo a legislação que cria crédito subsidiado, perdoa dívidas irresponsá­veis de grupos privados e impede o funcioname­nto bem-regulado do mercado nas áreas que mais afetam a vida do cidadão, como educação, saúde e saneamento básico. Tais grupos atuam em associação estreita com o alto funcionali­smo público e a Justiça, eles próprios organizado­s como grupos de interesse dedicados a extrair vantagens do Estado.

A captura do Estado por grupos de interesse é causa central do problema fiscal e da corrupção no Brasil.

Mudar esse quadro é possível. Outros países que, como nós, fundaram suas democracia­s depois de longos períodos autoritári­os conseguira­m resolver seu problema fiscal e, no processo, reduzir a corrupção. Espanha e Portugal quiçá sejam os exemplos mais relevantes para nós.

Mas a batalha é árdua e só será ganha se houver clareza a respeito do diagnóstic­o do problema.

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